terça-feira, 29 de maio de 2012

A falsa e a verdadeira solidão


A falsa solidão é uma posição favorável donde o indivíduo, a quem se negou direito de tornar-se pessoa, se vinga da sociedade pela conversão do seu individualismo em arma destrutiva. A verdadeira solidão encontra-se na humildade, que é infinitamente rica. Falsa soledade é o refúgio do orgulho, e é infinitamente pobre. A pobreza da falsa solitude vem de uma ilusão que pretende, embelezando-se com o que ela não poderá jamais possuir, distinguir da massa comum dos homens um só indivíduo. A verdadeira é desinteressada. É, por isso, rica de silêncio, de caridade e de paz. Ela descobre em si mesma reservas de bem aparentemente inesgotáveis, a repartir com os outros. A falsa é concentrada em si mesma. E, como não descobre nada em seu centro, esforça-se por puxar tudo para si. Mas, cada coisa que ela toca, fica infetada por sua nulidade, e desagrega-se. A solidão autêntica purifica a alma, abrindo-a de par em par aos quatro vendos da generosidade. A mentirosa, porém, aferrolha a porta contra todos os homens e deixa-se ficar absorvida nas suas próprias futilidades.

Estas duas espécies de solidão procuram distinguir o indivíduo da massa. A verdadeira consegue-o; a mentirosa falha. A genuína separa um homem do resto, a fim de que ele possa livremente desenvolver as potências do bem que há nele, e cumprir o seu verdadeiro destino, pondo-se ao serviço de todos. A falsa, porém, separa um homem dos seus irmãos, para impedir que ele continue efetivamente a dar ou a receber qualquer coisa, em seu próprio espírito, o que o mantém nume estado de indigência, miséria, cegueira, tormento e desespero. Enlouquecido por causa da sua insuficiência, o orgulhoso apropria-se, sem nenhum pudor, de satisfações e direitos que não lhe são devidos, nem jamais podem satisfazer-lhe, e que não serão nunca para ele um objeto de necessidade. Por não ter aprendido a distinguir o que é realmente seu, procura desesperadamente possuir o que nunca poderá pertencer-lhe.

Na realidade, o orgulhoso não tem respeito de si mesmo, porque sempre lhe faltou oportunidade para descobrir se há nele alguma coisa digna de respeito. Convencido da própria baixeza, e na desesperada esperança de guardar os outros na ignorância, ele apodera-se de tudo que lhes pertence, para tentar esconder-se. O simples fato de pertencerem a outrem, abre-lhe o apetite das coisas. Mas, como ele secretamente detesta o que é seu, cada coisa, tão logo passa a pertencer-lhe, perde o valor e torna-se-lhe odiosa. Vê-se obrigado a encher sempre a solidão de novas presas, de mais e mais rapinas, devorando as coisas não por estar à míngua, mas por não poder tolerar a vista do que já obteve.

São estes, pois, os que se colocam acima da massa comum dos outros, por que nunca aprenderam a amar nem a si nem a eles. Odeiam os homens porque se odeiam primeiro, e o seu amor pelos outros não passa de uma expressão do seu ódio solitário.

O solitário orgulhoso nunca é mais perigoso do que ao parecer sociável. Não tendo verdadeira solidão e, portanto, energia espiritual própria, carece desesperadamente dos outros.

Mas sua indigência é para absorvê-los, como se pudesse, assim, encher o vazio do seu espírito.

Quando o Senhor, na sua justiça, quer manifestar e punir os pecados de uma sociedade esquecida da lei natural, deixa-a cair nas mãos desse gênero de homens. O orgulhoso solitário é o ditador ideal, que põe o mundo inteiro a ferro e fogo, disseminando a destruição, abrindo brechas de morte de cidade em cidade, para que elas possam proclamar o nada e a degradação dos homens sem Deus.

A expressão perfeita de uma sociedade, que perdeu todo o sentido do valor da solidão pessoal, é um Estado forçado a viver como refugiado entre as suas próprias ruínas, uma turba sem teto, um rebanho sem estábulo.

A verdadeira solidão é a da caridade, que "não procura o que é seu". (I Cor 13,5).

Nossa solitude pode ser fundamentalmente verdadeira, mas ainda imperfeita. Neste caso, contamina-se com o orgulho. É uma mistura confusa de ódio e amor. Um dos segredos da perfeição espiritual é perceber que possuímos essa mistura em nós, e saber distinguir uma da outra. Pois a tentação dos que buscam a perfeição é tomar o ódio pelo amor e colocar a sua perfeição numa vida solitária que distingue dos outros pelo ódio, pondo-se a amar e a odiar, ao mesmo tempo, o que eles têm de bom.

O ascetismo do falso solitário é sempre falso. Pretende amar os outros, mas odeia-os. Pretende detestar as criaturas, mas estima-as. E como as ama no mau sentido, só consegue odiá-las.

Por conseguinte, a nossa reclusão, enquanto for imperfeita, há de tingir-se de amargura e desgosto, porque nos esgotará por um constante conflito. O aborrecimento é inevitável. A amargura, que não devia haver, está lá no entanto. Sirvam-nos ambos para a nossa purificação. Devem ensinar-nos a distinguir o que é realmente amargo do que é realmente doce, impedindo a cada um de achar uma envenenada doçura no ódio de si mesmo, e uma envenenada amargura no amor dos outros.

O verdadeiro solitário tem de reconhecer a sua obrigação de amar os homens e as criaturas de Deus: obrigação que, longe de ser penosa e desagradável, é um dever que não é nunca amargo. Ele deve aceitar sem murmuração a doçura do amor, e não se maldizer por sentir que o seu amor pode, no início, ser um pouco desordenado. Deve sofrer sem amargura, para aprender a amar como lhe cumpre, e não temer que o amor seja uma ameaça à solidão. O amor é a sua solidão.

A nossa soledade será imperfeita, enquanto for marcada de inquietação e de acedia. Pois esse vício faz-nos odiar o que é bom e fugir das virtudes que só nos podem salvar. A pura solidão interior não foge das coisas boas da vida nem da companhia dos homens, pois deixou de pretendê-los por causa deles mesmos. Não os desejando mais, abandona o temor de amá-los. Livre do medo, livra-se do azedume. Purificada do fel, a alma pode, sem risco, ficar só.

De fato, a alma que não procura ataviar-se de possessões e não se regala com nenhuma satisfação comprada ou roubada será o mais das vezes abandonada pelos outros homens. O verdadeiro solitário não tem que fugir dos outros: eles é que cessam de reparar nele, porque não compartilha a sua busca de ilusões. A alma verdadeiramente solitária torna-se perfeitamente incolor, e o seu retiro cessa de excitar nos outros o amor ou o ódio. Ela pode, sem dúvida, tornar-se odiada ou perseguida: mas não será em razão do que ela é. Só será detestada porque tem uma obra divina a realizar. Sua solidão, como tal, não criará conflito. A solidão só traz perseguição quando toma a forma de "missão" a cumprir, e nesse caso há nela alguma coisa de bem maior que solitude. Pois, quando o solitário vê que o seu retiro tomou o caráter de missão, descobre que se tornou uma força a reagir no próprio seio da sociedade em que vive, um poder que perturba, impede e acusa as forças do egoísmo e do orgulho, lembrando aos outros a sua carência de solidão, de caridade e de paz com Deus.

A pura solidão interior encontra-se na virtude da esperança. A esperança nos retira inteiramente deste mundo, embora aí continuemos em corpo. Nossas mentes retêm a visão clara do que é bom nas escrituras. As nossas vontades permanecem castas e solitárias no meio de toda a beleza criada, não mutiladas num confinamento medroso e envergonhado, mas suspensas ao Céu por uma humildade que a esperança despojou de todo o azedume, de toda a consolação e de todo o temor.

Assim é que estamos e, ao mesmo tempo, não estamos no tempo. Somos pobres, possuindo todas as coisas. Não tendo nada de nosso em que nos fiarmos, nada temos a perder e a temer. Cada coisa é reservada à nossa segura possessão, fora do alcance, nos Céus. Vivemos onde as nossas almas desejam estar, e nossos corpos deixam de ter importância excessiva. Somos sepultados em Cristo, a nossa vida se esconde com Ele em Deus, e sabemos o que significa a liberdade de Cristo.

Essa, a verdadeira solidão, em torno da qual não há disputas nem questões. A alma que então se encontrou a si mesma gravita em direção do deserto, mas não faz objeção em permanecer na cidade, estando só em toda a parte.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

Nenhum comentário: