Thomas Merton
Depois há a vocação monástica.
Se o padre pode, de algum modo, ser definido pela necessidade que têm os outros homens da sua ação santificante no mundo, isso é menos evidente num monge. Porque, embora seja verdade que a presença de cada santo no mundo exerce um efeito santificante, o monge não existe precisamente para que outros possam ser santos.
Assim seria um erro supor que a essência da vocação monástica é a oração pública. O monge ora, sem dúvida, pelos outros homens e pela Igreja toda. Mas não é isso a única e, mesmo, a principal razão da sua existência, que ainda menos se justifica pelo ensino, a produção literária, o estudo da Escritura ou do Canto Gregoriano, a agricultura e a pecuária. Há profusão de vacas no mundo, sem monges para criá-las.
É verdade que a vocação monástica dá testemunho à infinita transcendência de Deus, porque proclama em face do mundo que Deus tem o direito de separar alguns homens para que eles possam viver só para Ele. Mas, ao entrar no mosteiro, o monge deveria pensar em algo mais do que isso. De fato, não seria bom para ele ser por demais cônscio de que o seu sacrifício pode ter algum sentido para os outros homens. Se ele pensa muito que o mundo o recorda, a sua própria lembrança restabelecerá os vínculos que foram cortados irremediavelmente. Pois a essência da vocação monástica é justamente esse abandono do mundo e de todos os seus desejos, ambições e interesses, a fim de viver não só para Deus, mas de Deus e em Deus, e não por alguns anos, mas para sempre.
A coisa que mais verdadeiramente faz o monge é esta irrevogável ruptura com o mundo e com tudo que ele encerra, para procurar a Deus na solidão.
O mundo compreende mais depressa esse fato, do que o monge que consente em ver a pureza da sua vocação empanada pelas concessões ao espírito secular. Os primeiros a condenar um mosteiro infestado de mundanismo são aqueles que, no mundo, são os menos monásticos, pois mesmo em quem abandonou a religião fica, muitas vezes, uma alta e exigente idéia da perfeição religiosa. S. Bento disse que era uma questão de primeira importância para o monge "tornar-se estranho às maneiras do século" - a saeculi actibus se facere alienum. Mas, ao estabelecer esse principio, o Pai do monaquismo ocidental não pensava só na edificação dos fiéis. Ele pensava na necessidade mais urgente da própria alma do monge.
A graça que chama um homem para o mosteiro exige mais do que uma transposição material de ambiente. Não há vocação monástica autêntica, que não implique, ao mesmo tempo, uma completa conversão interior. Essa conversão não pode jamais consistir na simples troca de roupa ou na adoção de uma regra mais estrita de vida.
O hábito não faz o monge, nem as observâncias religiosas. A característica essencial duma vocação monástica é que ela atrai o monge para a solidão, para uma vida de renúncia e de oração, para procurar só a Deus. Onde faltam esses traços, a vocação pode, sem dúvida, ser religiosa, mas não é, propriamente, monástica. É uma pena que mosteiros das antigas Ordens monásticas, algumas vezes oferecem a seus membros uma vida em que aqueles elementos só se realizam em teoria e não de fato.
Onde o essencial da vida monástica é mantido, pouco importam as variações acidentais. Uma comunidade monástica pode ser física e espiritualmente separada do mundo, pode oferecer aos seus monges uma vida de oração, e, ao mesmo tempo, manter uma escola ou algumas paróquias, sem perigo sério para o espírito monástico, tal qual é interpretado por alguns ramos da família beneditina. Da mesma forma, a vida monástica não deve necessariamente ser prejudicada pela existência de uma modesta indústria, exercida pelos monges em vista do seu próprio sustento. Mas, se o espírito de solidão e de prece e o amor exclusivo de Deus faltam nesse mosteiro, por mais severa que a Regra possa ser [e] inviolável a clausura, meticuloso o zelo exterior pelas funções litúrgicas, os homens que aí vivem não são realmente monges. A mudança interior, a metanóia, a conversão para Deus, que constitui a própria essência do apelo monástico, não tomou posse das suas almas.
A "conversão" interior que constitui o monge mostra-se externamente por certos sinais: obediência, humildade, silêncio, desprendimento, modéstia, que podem resumir-se numa só palavra: paz.
O mosteiro é uma casa de Deus: por conseguinte, um santuário de paz. Na verdade, essa paz é comprada a alto preço. É a paz de homens pobres que estão sobrenaturalmente contentes com a sua pobreza, não por libertá-los esta das preocupações e responsabilidades do mundo, nem também por ajudá-los a levar uma vida essencialmente mais sadia e mais equilibrada do que a do mundo, mas porque ela, inexplicavelmente, os faz possuir o Deus de toda a paz.
A paz da vida monástica não pode ser explicada humana ou naturalmente. Entrem num mosteiro e vejam a vida de perto. Acharão que o que parece tão perfeito através das janelas da hospedaria é na realidade cheio das cicatrizes e estragos da imperfeição humana. O "tempo" de uma vida de comunidade não é invariavelmente sereno. A ordem do dia pode tornar-se às vezes instável, sobrecarregada, dispersiva e exaustiva. Usos e observâncias são às vezes torcidos em ridículas formalidades. Há momentos em que tudo no mosteiro parece conspirar para tornar impossíveis a paz e a oração. Tudo isso inevitavelmente encrespa a superfície da vida nas melhores comunidades. Sua função é lembrar-nos que a paz dos monges depende, afinal, de alguma coisa profunda e oculta em suas almas. A regularidade monástica é certamente muito importante para preservar a paz. Se a regularidade tiver de ser perdida para sempre, a paz não poderá durar muito. Mas ainda quando a vida se conforma à regra, a ordem só não basta para explicar a paz daqueles que dela vivem. Devemos olhar mais fundo no mistério da fé pelo qual, no secreto recesso das suas almas, os monges continuam na posse de Deus, e a despeito do que possa perturbar a superfície das suas vidas.
A vida monástica arde diante do Deus invisível como uma lâmpada defronte do tabernáculo. A mecha da lâmpada é a fé, a chama é a caridade, e o óleo, que alimenta a chama, é o sacrifício de si mesmo.
MERTON, Thomas. Homem Algum É Uma Ilha. Rio de Janeiro: Agir, 1968. p. 128-131.
MERTON, Thomas. Homem Algum É Uma Ilha. Rio de Janeiro: Agir, 1968. p. 128-131.
Um comentário:
A um monge foi perguntado em quem ele se espelhava ou tinha como modelo. Surpreendido o monge ficou calado. O aéreo entrevistador intempestiva e atabalhoadamente adiantou: ah o senhor não tem!? ao que o monge disse claro que tenho. Irrompe desconexo o entrevistador: será que com o senhor é o mesmo Jesus? e o monge humilde: sim é o mesmo Jesus. E volta o entrevistador com a mais remendada das emendas rotas: muita gente está dizendo a mesma coisa. E o grand finale foi do monge em santa irreverência ao mundo das trevas que aquele inocente e ingênuo entrevistador ainda se encontra: é realmente tem muita falta de originalidade no mundo!...:)
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