terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Feliz Natal!


Aos meus caríssimos seguidores do Amor e Pobreza, desejo-lhes um feliz Natal. Esta é uma época em que se realiza, com particular ênfase, as virtudes que nomeiam este blog. É a época em que o próprio Amor se fez Pobre.

Escrevi algo sobre o Natal aqui, se alguém se interessar.

No mais, que Deus os abençoe a todos. Pax.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Dia de São João da Cruz - Um Pastorinho


Um Pastorinho, só, está penando,
privado de prazer e de contento,
Posto na pastorinha o pensamento,
Seu peito de amor ferido, pranteando.

Não chora por tê-lo o amor chagado,
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado.

Que só o pensar que está esquecido
Por sua bela pastora, é dor tamanha,
Que se deixa maltratar em terra estranha,
Seu peito por amor mui dolorido.

E disse o Pastorinho: Ai, desditado!
De quem do meu amor se faz ausente
E não quer gozar de mim presente!
Seu peito por amor tão magoado!

Passado tempo em árvore subido
Ali seus belos braços alargou,
E preso a eles o Pastor ali ficou,
Seu peito por amor mui dolorido.

S. João da Cruz

***
Só esclarecendo:

- O Pastorinho é Jesus;
- A pastorinha é a alma humana;
- A terra estranha é esta terra, chamada pelos místicos de exílio; aqui o santo faz referência à Encarnação de Jesus;
- A árvore é a Cruz.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Metafísica do amor


Desde uma perspectiva metafísica, e de acordo com uma tradição multissecular que vai desde Aristóteles até Ortega, amar é "corroborar a pessoa querida no seu ser": confirmá-la na existência, voltarmo-nos por completo sobre ela para apoiá-la, dizer-lhe um sim com alcance ontológico. Josef Pieper afirma o mesmo pondo na boca do enamorado expressões como as seguintes: "É maravilhoso que existas! Eu quero, com todas as forças da minha alma, que tu existas; que maravilhoso que tenhas sido criado!". Ortega, por sua parte, chega a sustentar que não só desejamos que o amado exista, senão que seu ser se torna imprescindível para a integridade de nosso mundo: "amar uma pessoa é estar empenhado em que exista, não admitir, naquilo que depende de si, a possibilidade de um universo onde a pessoa amada está ausente."

Reconhecemos, então, que uma realidade como o amor, tão acriticamente qualificada de "pouco metafísica", aceita uma radical penetração cognoscitiva em termos estritos de ser. Mais ainda, seguindo esta linha, nossa visão e nossa vivência do amor serão tanto mais profundas e ricas quanto mais cheia de sentido e compreensão se encontre nossa concepção do ser.

Por exemplo, se conforme ao que estudaremos, consideramos que o ser é ato no sentido mais radical, que é "ativo por si mesmo", que tende à expansão perfectiva, à plenitude, pergunto: que acontece com a corroboração no ser, com esse inicial dizer "sim" a quem amamos? E respondo: dará logo início a outro momento ou dimensão do amor: desejar a perfeição da pessoa querida.

Amar não será, então, confirmar estaticamente o ser de quem se ama, senão desejar e procurar o apogeu de perfeição do sujeito querido: aspirar a que seja uma pessoa cabal, completa, e pôr todos os meios a nosso alcance para que atinja tal objetivo. Em virtude da mesma índole constitutiva do ato de ser, resulta impossível uma verdadeira corroboração no ser que não faça florescer e dê coragem a um processo dinâmico de aperfeiçoamento da realidade amada: não se confirma efetivamente alguém no seu ser se não se procura, de maneira veemente, a plenitude final que esse ato, pela mesma condição ativa que o configura, exige.

Mas, além disso, o caráter dinâmico da confirmação inicial do ser desemboca no momento conclusivo de qualquer carinho autêntico e genuíno: a entrega. Quem ama de verdade não se limita a reafirmar a existência da pessoa querida, ou até mesmo desejar-lhe sinceramente seu aperfeiçoamento último, senão que torna esse desejo operativo, pondo-se sem reservas a serviço do amado, mediante a entrega do que nele há de mais valioso: o próprio ser pessoal. Tudo, pois, teoria e praxes, gira em torno a uma concepção do ser mais completa.

Porque, com efeito, muitos dos caracteres constitutivos do amor genuíno podem inferir-se da natureza do ser que configura o sujeito humano. Por exemplo, dado que o ser é ato total da realidade que anima, o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições, dirá Tomás de Aquino, não se pode amar uma pessoa sem confirmá-la em seu ser completo, sem aceitá-la integralmente, tal como ela é... uma vez que se quer toda a pessoa do amado, dela nada se despreza... ainda que se busque, simultaneamente, da maneira mais amável possível, através do próprio carinho e da própria entrega, o crescimento perfectivo, o cume de perfeição na pessoa que se ama.

Além disso, e este é o último ponto a que faço alusão nesta panorâmica esquemática, a proporção exigida entre causa e efeito torna imprescindível que a confirmação no ser de quem amamos se realize a partir do nosso próprio ser, ou seja, que se coloquem em jogo, junto a um decisivo ato da vontade que quer o bem para o amado, as fibras mais fundas e íntimas e aparentemente mais superficiais da própria e completa personalidade. Amar é, forçosamente, corroborar de forma absoluta e incondicionada: no ser, íntegro, completo, e desde o ser, também em sua totalidade.

Tomás Melendo. Metafísica da realidade. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio" (Ramon Llull), 2002. p. 41-42.

sábado, 23 de novembro de 2013

Autoconsciência X Imitação


Há um forte desejo, na maioria de nós, de nos vermos como instrumentos nas mãos dos outros e, assim, livrarmo-nos da responsabilidade de atos que são estimulados por nossas próprias inclinações e impulsos questionáveis. Tanto o forte quanto o fraco agarram essa desculpa. O fraco esconde sua maldade sob a virtude da obediência. O forte reivindica absolvição proclamando-se o instrumento escolhido por um poder superior - Deus, a história, o destino, a nação ou a humanidade.

Similarmente, temos mais confiança no que copiamos do que naquilo que criamos. Não podemos produzir uma sensação de absoluta segurança de nada que tenha a raiz em nós mesmos. A mais profunda sensação de insegurança vem do estar sozinho, e não estamos sozinhos quando imitamos. É assim com a maioria de nós. Somos o que as outras pessoas dizem que somos. Nós nos conhecemos principalmente pelo que ouvimos.

Para nos tornarmos diferentes do que somos, devemos ter certa consciência do que somos. Não podemos perceber, sem a autoconsciência, se essa diferença resultará em dissimulação ou em uma mudança de sentimento real. No entanto, é notável que as pessoas que estão mais insatisfeitas consigo mesmas, que mais desejam uma nova identidade, possuem a menor autoconsciência. Elas se afastaram de uma personalidade rejeitada e, portanto, nunca tiveram uma boa visão a respeito dela. O resultado é que a maioria das pessoas insatisfeitas não pode nem disfarçar nem chegar a uma mudança de sentimento real. São transparentes, e suas qualidades rejeitadas persistem por meio de todas as tentativas de dramatização e transformação de si mesmas.

Bruce Lee, O Tao do Jeet Kune Do. São Paulo: Conrad, 2004. p. 235.                

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Divagações sobre a humildade


No post anterior, mostramos como o amor pressupõe o conhecimento da verdade e, depois, como dele se segue o serviço. Mostremos, agora, o lugar da humildade em todo esse processo.

Humildade vem de húmus, que significa terra, e dará origem a homem. Homem e humildade têm a mesma origem, portanto. O homem está associado à terra devido à sua criação, pois conta a Escritura que Deus formou o homem do barro. Deus toma um elemento material e sopra sobre ele um elemento espiritual, e eis o homem: uma espécie de encarnação de um princípio superior - a alma - num corpo. E o homem é ambos: corpo e alma. Nele há, portanto, um misto de baixeza e grandeza. No entanto, essa relação é assimétrica, pois, sendo o princípio espiritual mais forte e mais nobre, ele é capaz de elevar o princípio material à sua mesma dignidade, à semelhança do Cristo que, assumindo a natureza humana, a elevava pela sua divindade. Isto é possível porque ambos - o homem e Cristo - , embora possuindo, por assim dizer, duas naturezas, são uma só pessoa.

É por isso que se dirá, também, de modo aparentemente paradoxal, que a humildade possui uma irmã gêmea: a magnanimidade. Talvez pudéssemos associar, então, a humildade à terra, e a magnanimidade ao espírito e, assim como o homem é ambos, assim também ele deveria possuir ambos. Porém, esta explicação é um tanto questionável, pois, segundo isso, Deus não poderia ter humildade, já que não possui matéria, ou, no máximo, deveríamos admitir que Ele somente tenha passado a ter humildade após a encarnação, o que é um absoluto non sense.

Esta idéia se revela absurda também de outro lado: a matéria costuma vangloriar-se e exaltar-se de modo que, quando somos faltos de humildade, em geral isto se deve a algum fator muito carnal e, portanto, muito material. É claro que não sempre, mas isso acontece sim.

Abortemos, pois, este caminho, já que nos levou a uma aporia.

Parece que ser humilde é entender a realidade sobre nós mesmos. Como surgimos do húmus, ser humilde é entender a nossa condição criatural, a nossa absoluta dependência de Deus, não apenas com relação à nossa criação, mas também no que diz respeito à nossa sustentação no ser. Se assim é, humildade seria a correspondência, na inteligência, da nossa real condição. Ora, à correspondência entre inteligência e coisa chamamos verdade. A humildade seria, portanto, igual à verdade? Meio que sem querer querendo, chegamos à definição de humildade que Sta Teresa D'Avila faz. Ser humilde, então, seria ver as coisas como elas realmente são. Se assim é, a humildade por excelência deveria ser atribuída ao próprio Deus, pois, tendo feito todas as coisas e sendo impossível de enganar-se, Ele as veria de modo absolutamente completo, visão que Lhe é totalmente única por abarcar, num só ato, de modo total e totalidade dos seres.

O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, e isto faz referência ao fato de ele ter sido criado com uma inteligência e uma vontade. A inteligência humana é uma imagem da inteligência divina. Daí que o fato de o homem poder conhecer a verdade é, também, uma participação na faculdade divina de conhecê-la. Logo, a humildade humana, sendo o conhecimento humano da verdade, é também uma participação na humildade divina. E isso é tal que somente é possível ser humilde numa relação íntima com Deus. Isto seria objetado por muita gente que nos traria, então, pessoas supostamente não religiosas e que, não obstante, demonstrariam humildade. Mas aqui há que se ver o conceito que se faz de humildade. Em geral, pensa-se em pessoas pusilânimes, fracas, sem iniciativa. Ou então, pessoas que não se vangloriam e não ficam gritando aos quatro cantos os seus dotes. Observemos que, no primeiro caso, o conceito que se faz de humildade está totalmente equivocado. E no segundo caso, embora tal descrição se aproxime, de fato, da humildade, o que estamos a fazer aí é avaliando sinais externos que podem ou não ter uma correspondência exata internamente.

A hesitação em vangloriar-se pode ser resultado da humildade, mas também de outras ilusões acerca de si mesmo, ou ainda de estratégias inventadas para se cuidar da própria imagem. Para cortar esta última possibilidade, basta que a pessoa seja tão sincera quanto possa ser, embora isso às vezes não signifique muito e o ato do auto-engano possa se dar de modo relativamente inconsciente. Porém, de que modo podemos reconhecer que a visão que temos de nós mesmos corresponde ao que de fato somos? Não nos é possível sair de nós mesmos e observar, como que por uma segunda inteligência, se a nossa primeira inteligência corresponde ao que somos. É por isso que precisamos de um Terceiro: Deus. É Deus quem nos ajudará a reconhecer o que somos e limpará os nossos olhos para que vejamos o que somos. O grande critério que temos é a vida de Jesus Cristo que, ao fazer-se homem, assumiu o papel de arquétipo do homem. "Eis o homem", profetizava sem saber o covarde Pilatos. Ao observá-lo, podemos ter uma clara idéia do que o homem deve ser e, ao contrastá-lo conosco, saberemos se somos alguma coisa que preste.

Costumamos ler, nas hagiografias, que os santos possuem o hábito de falar muito mal de si mesmos. Mais uma vez, quando os olhamos vemos apenas os efeitos de algo interno. Um ator seria capaz de nos enganar? Por certo. E é por isso que Deus confirma a vida dos seus santos com certos sinais que estariam além da capacidade de qualquer encenação. Porém, nós devemos evitar de cair num erro banal que é o de supor que a humildade seja a depreciação externa e afetada de si mesmo. Não é por chamamos a nós mesmos de víboras, ou grandes pecadores, etc., que passaremos a ser humildes. Isso tudo pode ser, como já dito, apenas uma estratégia de confirmação, para nós e para os outros, da nossa própria humildade. E, não obstante, esta humildade pode inexistir e consistir precisamente no contrário. Os santos diziam este tipo de coisa porque, naquelas alturas da vida interior, já se tinham desvanecido as sombras da soberba e da vaidade, dando lugar a uma clara visão da realidade das coisas e, sobretudo, de si mesmos.

Mas voltemos ao nosso tamanho de meros mortais. Vimos como a humildade tem a ver com a inteligência. Porém, sabemos que a humildade tem mais a ver com uma atitude diante das coisas, não é? Quando dizemos que alguém é humilde, geralmente não nos referimos ao modo como entende as coisas, mas ao modo como se comporta. Se a humildade está mesmo mais relacionada com a atitude, é preciso dizer que ela está entranhada com a faculdade da vontade, pois é pela vontade que agimos. Isto é verdade. E a humildade é o extremo oposto da revolta. Portanto, ela tem a ver com submissão. Submissão a quê? À verdade. Se é submissão à verdade, isto significa que a humildade enquanto atitude é posterior à humildade enquanto inteligência, pois a atitude de submissão à verdade é posterior ao conhecimento da verdade. No entanto, o próprio ato de conhecimento da verdade pressupõe uma atitude, pois é submetendo-nos à natureza do objeto que podemos conhecê-lo. Se não houvesse esta submissão intuitivo-contemplativa, tampouco haveria conhecimento, mas antes invenção ou criação.

A humildade, portanto, está na atitude primeira pela qual a inteligência se direciona aos objetos e está na submissão à realidade por ela apreendida. Está na coragem de ver-se tal qual se é e está na fidelidade a esta visão, isto é, na recusa em fantasiar-se, em esconder-se sob conceitos errados e fictícios.

Como a humildade faz parte também da dimensão da atitude, isto é, do exercício da vontade, então ela deve estar intimamente relacionada ao ato de amar, pois este é o ato da vontade por excelência. Víamos, no texto anterior, que o amor leva ao serviço, e aqui a humildade se mostra bem mais familiar. Primeiramente: quando amamos algo ou alguém, podemos amá-lo em função de nós, isto é, pela sua utilidade, ou em função de si mesmo. Quando amamos alguma coisa com interesse, nós reconfiguramos esta coisa segundo nos agrade ou desagrade; nós fazemos como uma nova criação, esvaziando-a de seu valor preexistente e imprimindo um à nossa medida. Mas, visto que não podemos criar nada, esta nova criação é somente uma ilusão, uma capa que, pondo-se por sobre o objeto, o esconde na sua própria natureza. Se distorcemos as coisas, não pode estar nisso a humildade, pois vimos como ela está associada à visão clara. Quando, porém, amamos algo em função de si mesmo, reconhecendo o valor que lhe é inerente independentemente da nossa possibilidade de frui-lo, então este amor pressupõe um ato contemplativo que é a visão clara do próprio objeto de modo que os nossos coloridos pessoais - que são sempre um acréscimo dispensável - não obnubilem o objeto diante de nós. Se o amor leva ao serviço, um amor desinteressado leva ao perfeito serviço e só então a humildade pode efetivar-se em toda a sua realeza, pois a humildade é também uma rainha. Toda a dimensão da verdade e da contemplação só se abre a quem servi-la. Sendo Cristo a verdade, Ele somente poderá ser conhecido por quem cultivá-la. Do contrário, passaremos a vida fazendo projeções e as chamando pelo nome de Jesus. Não obstante o santo nome, teremos fabricado um bezerro de ouro, e seremos idólatras pelo resto do tempo.

Se o amor leva a submeter-se ao que se ama, esta submissão se dá em virtude do valor mesmo de quem se ama. Se quem se ama é Deus, isto significa que a humildade terá de encontrar uma maneira conveniente de portar-se diante de alguém cuja dignidade é absolutamente infinita. Se o compreendêssemos, talvez supuséssemos que nada mais havia o que fazer além de permanecer paralisado. No entanto, a humildade, diante de Deus, se porta com uma estranha liberdade, e isto se deve à sua outra faceta, pouco conhecida, que é o amor à grandeza. Diante de Deus, a humildade encontra-se em casa. E em casa, ela não pode nem quer fingir. Há uma naturalidade em submeter-se a Deus que é a naturalidade de agir conforme sua natureza e encontrar seu lugar de repouso. Aquele que serve a Deus com humildade encontra, na sua alma, uma série de novidades que vão desabrochando, pois o Sol enfim se lhes torna visível e sensível. A humildade, então, como dizia Sto Antônio de Pádua, é o início de todo um cabedal de virtudes, bem como de alegrias insuspeitadas.

E o que acontece quando servimos a outra pessoa? Esta pessoa dispõe de uma alma imortal, igual à nossa, de modo que, essencialmente, não somos inferiores uns aos outros. Mas o mero fato de existirmos numa mesma realidade faz que seja natural, antes, a nossa subsistência conjunta do que qualquer tipo de combate. Talvez soe meio hermético, mas isto poderia ser expresso do seguinte modo: o existente primariamente existe; isto é o que lhe é mais natural; qualquer eventual dissolução seria um segundo movimento e, como é claro, de oposição ao primeiro, o que gera uma espécie de contradição. Portanto, destruir-se é mais complicado e artificial do que existir e manter-se. Uma vez que existimos, o primeiro ato da nossa natureza é de mútua colaboração, pelo que Aristóteles estava certo e Rousseau, errado. Este ambiente de mútua colaboração só é possível se não estamos egocentrados. A perpetuação da simplicidade da existência e da ordem somente se dá quando, saindo de nós mesmos, colaboramos para o bem dos demais, submetidos todos a uma mesma ordem que nos abrange e nos transcende e vem d'Aquele que é maior que nós. Por isso, só é possível viver o amor fraterno se cultivarmos a humildade. Quando esta falta, nos egocentramos e passamos a ver os demais como rivais, pois então gostaríamos que fossem meramente extensões do nosso ser, igualmente empenhados na nossa satisfação. O extremo disso é o inferno: a guerra perpétua.

Diante disso tudo, é possível observar como a humildade é uma virtude rainha que deve ser onipresente na vida humana, como condição inclusive de saúde e de ordem. Diz um antigo adágio que "servir a Deus é reinar". Receber de Deus a graça da humildade significa despertar para a razão íntima das coisas, das pessoas e de si mesmo. Diante disto, cessa a escravidão e uma liberdade imprevista desponta. Até lá, que triste é não sabermos o que significa sermos amigos de Deus.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Pressupostos e implicações do amor


Se alguém nos perguntasse sobre qual é o traço principal do Cristianismo, penso que não seria difícil responder: é o amor. É uma resposta simples, mas que, se bem compreendida, já nos diz muita coisa. Vejamos..

O amor pressupõe necessariamente o conhecimento. Eu nunca posso amar algo que eu não conheço. Imagina que louco eu amanhecer amanhã apaixonado por uma japonesa que nunca vi na vida! Isso não é possível. Eu só posso amar o que eu conheço.

E a faculdade de conhecer se orienta para o que mais a não ser para a verdade? Quando perguntamos alguma coisa a alguém, o que desejamos? Que este alguém nos minta? Será que nos satisfazemos quando chegamos a conhecer algo que sabemos que não é verdade? Quando o marido chega em casa atrasado e diz à mulher que estava na sinuca, é comum ela ficar tranquila, mesmo que sinta um perfume estranho e feminino no ar? É óbvio que não. Se nós de fato podemos conhecer alguma coisa, é sempre a verdade que nos interessa.

Aqui já é possível notar a íntima relação entre amor e verdade. Não à toa, Bento XVI escrevia sobre isso na sua Encíclica Caritas in Veritate. Se o amor pressupõe o conhecimento e se este se orienta naturalmente à verdade, então significa que a verdade é anterior ao amor, de modo que um amor que não prime pela verdade carece de seu fundamento.

Vimos, então, o que, por assim dizer, está por trás do amor. Agora, observemos aquilo que se segue naturalmente a partir dele. Quando amamos alguém, nós não conseguimos ficar indiferentes à pessoa. No Pequeno Príncipe, de Saint Exupery, a raposinha diz ao menino: "se não me cativas, serás para mim como outros mil. Mas, se me cativares, serás para mim único no mundo." O amor transfigura a pessoa amada aos olhos do amante. Isso faz com que este se devote àquele, isto é, busque fazer algo por ele. Podemos dizer que o amor nos leva a agir e não só: ele nos leva a agir em função do outro.

Vejamos isso de perto: agir é sair de onde ou de como se estava. O amor exige um movimento. Portanto, ele faz deixar de se ser o que se era. Isto implica dizer que, de algum modo, ele leva ao sacrifício do que se era. E como age em função do outro, ele faz o amante sair de si. Neste ato de sair de si, o amor é letal ao egoísmo, que segue uma lógica absolutamente contrária. Ao sair de si, o amante quebra uma tendência que está com ele desde que nasceu: a de guardar-se sempre dentro de uma redoma de interesses próprios. Este era o seu mundo. O amor, provocando este sair de si - que é a definição de êxtase - apresenta ao sujeito as luzes e os ares de uma dimensão transcendente, isto é, que está além daquilo que até então ele conhecia. É daqui que pode surgir a contemplação. Esta só nasce quando há a junção de amor e desinteresse.

Desprendendo-se de si, a pessoa sai de si e vai em direção ao outro. E vai em direção ao outro para quê? Não para sugá-lo, mas para ser-lhe útil. O amor, portanto, ordena-se ao serviço e serve bem quem é humilde. Então vejamos onde chegamos:

O amor pressupõe o conhecimento e se ordena ao serviço. Curiosamente, é o que nos diz o Catecismo da Igreja: O sentido da vida humana é conhecer, amar e servir a Deus.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Nova mudança de template.

Mudei o template mais uma vez. O modelo anterior tinha alguns problemas e eu penso que está melhor deste novo jeito. Ainda vou dar uma ajeitada aqui e acolá. Mas, enfim.. 

Pax.

sábado, 14 de setembro de 2013

Dia da exaltação da Santa Cruz

Pessoal, uma amiga minha tinha me pedido para gravar um vídeo com uma sucinta exposição sobre a Santa Cruz para que ele fosse passado num sarau que ocorreria por lá precisamente hoje. Gravei-o e, embora seja bem resumido e a qualidade não tenha ficado tão boa, principalmente no que diz respeito ao som, partilho-o por aqui, neste lugar reservado aos mais "chegados".



sábado, 7 de setembro de 2013

O medo



O medo é uma atitude interna de repulsa de algo em função de uma previsibilidade, ou seja, o medo não é uma resposta a um desprazer atual, mas é a antecipação de um desprazer futuro, iminente ou não. Quando ele ocorre, muda a dinâmica interior da alma, excluindo-a de seu porte natural e a põe em defensivo. Neste ato, a alma se enrijece, abandona sua espontaneidade, recorta o real focando sua possível ameaça, e interpreta todas as demais coisas em função desta sua suposta ameaça. O real, antes uno, é agora dividido e se estabelece uma assimetria entre os níveis. O objeto temido é retirado de seu contexto, motivo pelo qual a sua consideração objetiva é, de algum modo, impedida, pois ele somente adquire sentido completo justamente no contexto de que faz parte originariamente. Assim sendo, o medo gera forçosamente uma interpretação viciada do objeto temido. A alma cai, em algum grau, em ilusão e se nela acredita é como se fugisse de fantasmas inexistentes criados por ela mesma.

Essa ilusão, contudo, não precisa ser total. Ela comumente se dá em parte. Mas seu grau é diretamente proporcional à irracionalidade da sua natureza, isto é, à sua intensidade a priori. É a priori porque, sendo necessariamente antecipação, não pode provir da experiência – ao menos, não da experiência do objeto temido atualmente. Este medo pode ser repercussão de experiências anteriores, é verdade. Mas experiências anteriores, embora possam ser ditas semelhantes, não são iguais e não são a mesma que agora se teme, de modo que a correspondência entre uma e outra pode consistir em mera arbitrariedade. Outra coisa, porém, é quando a situação temida o é, não por desconforto sensível, mas por princípio racional.

domingo, 11 de agosto de 2013

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 3º Mistério


3º Mistério - O Nascimento de Jesus na gruta de Belém.

Iam Maria e José para o recenseamento em Belém. Já ali por perto, completaram-se os dias da gravidez de Maria e José tentou conseguir-lhe um lugar nas hospedarias. Não havia vaga. Era uma época de grande circulação. José não sabia o que fazer. Sentiu o peso da responsabilidade sobre os seus ombros, pois a essa altura já tinha total consciência da missão que lhe fora confiada. E agora, porém, sequer podia garantir um nascimento digno ao Filho de Deus.

É óbvio que tudo isto ocorria segundo os planos divinos. Mas ninguém podia prever que Jesus tivesse esses gostos excêntricos pelo último lugar. Esperavam que Ele se portasse como o Rei que era, que ostentasse seu poder. Não espantaria tanto se Ele saísse do ventre de Maria por entre rodopios, jatos de luz e trovões. Isto de algum modo se adequaria à grandeza da Sua identidade. Porém, que nascesse assim, sem lugar, sendo rejeitado, filho de nazarenos e numa noite em que ninguém podia lhe prover as mínimas dignidades, isto era um escândalo. E foi assim que Ele quis. Enquanto Maria esperava pacientemente - não sentia dores -, José soube de uma estrebaria por ali. Era a única possibilidade. Foram para lá e procuraram um lugar por entre os animais cuja "casa" eles agora tomavam de empréstimo. "O boi e o burro conhecem o presépio do seu Senhor", escrevia Isaías setecentos anos atrás. Foram os animais que cederam o mínimo aconchego a Jesus, já que os homens o tinham rejeitado. Isto é um símbolo do que será a Sua vida: Ele mesmo dirá que não terá onde reclinar a cabeça e sobre Ele se escreverá que os seus, para os quais havia vindo,  não o tinham recebido.

Maria deu à luz Jesus que nasceu como uma criança qualquer: pobre, frágil, indefesa e inofensiva. Seu grito infante soou no silêncio da noite e juntou-se ao som dos grilos. Era Deus que nascia. S. João da Cruz, numa de suas poesias, relata este evento de um modo extremamente belo: "

E a Mãe se assombrava
da troca que ali se via:
o pranto do homem em Deus,
e no homem a alegria."

Era Deus que chorava para que o homem pudesse sorrir. A pobreza de Deus era completa; plena a Sua doação. Nascera sem lugar, sem festa, depois das primeiras rejeições. Desde agora, anunciava que o Seu caminho era a santa cruz. Escrevia Sto Afonso que por sobre a gruta de Belém já era possível divisar a sombra da cruz. Ei-lo exposto ao frio da noite e, sendo Deus, necessitado dos consolos de Sua Mãe. Sendo Deus, necessitado.. Que escândalo!

Os reis magos vinham do oriente à Sua procura. Depois de logicamente passar pelos palácios, encontraram aquele pobre recinto em que Ele havia nascido. A sabedoria dos reis era verdadeira: reconheceram a Jesus tão logo O viram. Este tipo de saber não se aprende nos livros. De algum modo, a pobreza do Cristo lhes tocou a alma e eles, profundamente comovidos com aquilo tudo - algo absolutamente sem precedentes - curvaram o joelho na terra e prostraram ainda mais profundamente a alma. Ofertaram-No, depois de adorá-Lo, aquilo que traziam: o ouro, que reconhecia a Sua realeza; o incenso, que reconhecia a Sua divindade e encerrava definitivamente os cultos aos outros deuses; e a mirra, erva amarga que lhe prenunciava o tipo de vida que teria e que era expressão da Sua doação. Jesus, portanto, é o Rei-Deus que se esvazia e sofre. Seus seguidores deverão fazer o mesmo e compreender que a disposição à doação e ao sofrimento, isto é, o abraço à Cruz, símbolo do mais total esvaziamento, será o distintivo dos Seus verdadeiros amigos.



Também os pastores, gente de vida humilde, foram pessoalmente saudados pelos anjos. Era o modo que Jesus encontrara para convidá-los. Importante notar: os anjos não apenas falaram; eles cantaram. Já dizia Sto Agostinho: "cantar é próprio de quem ama". E neste episódio, notamos muito facilmente que a canção é extremamente jubilosa. Aqui juntam-se amor e alegria, justamente porque Ele nasceu. Este amor e alegria são precedidos pela Sua pobreza. Eis aí uma santa tríade: Pobreza, Amor e Alegria, sendo a pobreza a garantia e a condição de possibilidade do amor e da alegria. Isto lembra São Francisco de Assis que dizia: "Quando à pobreza se une a alegria, não há cobiça nem avareza." Cobiça e avareza são paixões que fecham o sujeito que as sente; constituem, portanto, o oposto do amor que abre a alma e gera o êxtase, isto é, o sair de si. Seria bom meditar um tanto nesta relação.

Naquela noite de Belém, desconhecida pelos que se ocupavam de suas próprias coisas - com exceção de Herodes, que já perdia o sono -, escondia-se uma alegria profunda, descomunal e de uma pureza absolutamente única, pois a Pobreza do Cristo e o Amor que O tinha motivado a este ato inaudito a tornavam de fato transcendente, isto é, era uma alegria que trazia um sabor da eternidade. Porém, silente e discreta, do jeito d'Ele.

Que por este mistério, Nosso Senhor, pelas mãos da Virgem Maria, nos dê o amor da Pobreza interior, e nos liberte a alma para que possamos fruir da verdadeira alegria e do verdadeiro amor.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 2º Mistério


2º Mistério - A Visita de Maria a sua prima Sta Isabel

Maria estava grávida de Deus. Poderia ter ficado absorta na contemplação deste mistério e esquecer-se do mundo. Porém, ao saber que sua prima Isabel, de idade avançada, estava já no sexto mês de gestação, decide viajar até lá e se submete a uma caminhada cansativa de vários dias. Maria não pensa em si mesma. Nela se realiza aquilo que Sta Teresa D'Avila dizia sobre a alma enamorada: "E vive até de si tão descuidada." Ela tinha clara consciência de que a gravidez de Isabel era de origem divina, pois, além de a idade de Isabel não permitir mais que ela gestasse um filho de modo natural, o fato lhe fora comunicado pelo próprio Gabriel. A gravidez de sua prima, portanto, estava relacionada com a sua. Era igualmente manifestação da vontade divina, vontade que Maria amava e a que estava sempre atenta.

E Maria se dispõe e vai. Ela nos dá nisso uma lição. Todos conhecemos casos nos quais, mesmo sabendo da vontade divina, nós nos negamos a fazê-la por exigir de nós um mínimo de esforço. Isto só demonstra o quão poucos estamos esvaziados e o quanto ainda defendemos as nossas bagatelas - nosso bem estar, nossa imagem pessoal, nossa opinião - mesmo quando é Deus Quem nos pede abrir as mãos e soltá-las. 

Maria foi e aqui, pela primeira vez, há um indício sensível do que tinha acontecido no seu íntimo. O seu esvaziamento foi tão santo que o Verbo divino, no seu seio, pôde, a partir da sua voz, comunicar-Se. Maria apenas saudou Isabel. Isto foi suficiente para que esta última ficasse cheia do Espírito Santo. Certa vez, escutei uma palestra em que se falava do significado de ser pessoa. A palavra "pessoa" vem de "persona" que significa originalmente "aquele pelo qual - através do qual - o som soa". Na ocasião, o palestrante tomou um sino e demonstrou que ele só soa devidamente quando vazio. Maria é um sino vazio através do qual soa a voz silenciosa do Verbo divino. Ela é, neste sentido, plenamente pessoa. A tradição também atribuirá o qualificativo de pessoa a sujeitos que possuam a faculdade de autodeterminação, isto é, que sejam senhores de si e responsáveis por seus atos. Pessoa é, portanto, aquele cujo comportamento não se explica de modo puramente causal. Ser pessoa, então, é ser livre, isto é, dispor de sua inteligência e de sua vontade. Maria era pessoa porque através dela soava a voz divina e também porque ela era plenamente livre, sendo o seu Sim a Deus expressão mesma desta sua perfeita liberdade. Podemos então dizer: é livre aquele que é vazio. Logo, é a soberba que nos enche, isto é, são os apegos e os caprichos que nos fazem decair da nossa condição de pessoas, que reduzem a nossa liberdade e que impedem a voz de Deus de soar através de nós.

Isabel ficou cheia do Espírito Santo porque Este encontrou alguém vazio por quem pudesse soar. E foi enquanto cheia do Espírito Santo que Isabel exclamou: "de onde me vem a honra de que a Mãe do meu Senhor me venha visitar?". Os primeiros efeitos do Espírito Santo são, pois, uma nova clareza a respeito da natureza íntima das coisas - ela intui quem é Maria e a Quem ela traz no seu ventre, pelo que a chama de "Mãe do meu Senhor" - e uma atitude de esvaziamento de si mesmo - "De onde me vem esta honra?", isto é, "não vem de mim mesma". 



E aqui acontece algo que considero tão bonito: João Batista, ainda no ventre de Isabel, percebendo a voz de Maria e, nela, a presença de Jesus, estremece. Quando medito nisto, sempre o relaciono a duas coisas. Primeiramente, a um trecho do livro dos Cânticos: "Meu bem-amado passou a mão pela abertura da porta e o meu coração estremeceu." (Ct 5,4). João sentiu a presença do seu bem amado pela porta - isto é, pela via aberta - chamada Maria. Em seguida, comove-me o fato de que o próprio João Batista, quando crescido, dirá de si mesmo: "o amigo do Esposo alegra-se sobremodo com a voz do Esposo" (Jo 3,29). Parece-me que esta afirmação possui os ecos daquela visita.

Maria fica com Isabel ainda por seis meses, ajudando-lhe nos seus serviços domésticos. Nos trabalhos mais ordinários, ela encontra ocasião de servir a Deus e à sua prima. A partir de suas disposições interiores e da presença do Verbo no seu corpo e na sua alma, ela transfigura o comum em divino. Viver com ela é viver o céu na terra, pois Maria, como morada de Deus, é um tipo de Céu. S. Luís Maria Grignion de Montfort chega a dizer que ela é o paraíso particular de Deus. 

A pobreza interior torna a alma humana em terreno fecundo de Deus. Peçamos à Virgem Maria que faça a nossa alma semelhante à sua, que nos dê o seu desprendimento e que nos converta em veículos puros de Deus.

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 1º Mistério


Para ajudar na meditação dos mistérios gozosos.

A qualidade dos mistérios não é a sua incognoscibilidade, mas a sua inesgotabilidade. Isto quer dizer que os mistérios são oceanos: nós os conhecemos somente em parte e, por mais que neles aprofundemos, nunca chegamos ao seu fim.

Os mistérios gozosos sempre me pareceram expressar de modo muito profundo o mistério da pobreza interior. Porei-os abaixo um por um e em seguida tecerei algumas reflexões a respeito.

1º Mistério - A visita do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria e a encarnação do Verbo.

A Virgem Maria era uma jovenzinha da pobre cidade de Nazaré e estava prometida em casamento a José. Seguia a religião judaica e esperava, como todos os demais judeus, pelo cumprimento da promessa: a vinda do Redentor. A sua vida estava como que prevista: casaria, seria mãe, educaria os filhos na Lei de Deus. Maria tinha as suas seguranças, as suas garantias, as suas expectativas humanas; seria confortável manter-se circunscrita num tipo de vida que já conhecia de antemão. Contudo, a ela seria pedido, como a Abraão, sair de suas coisas, da sua terra, das situações que já lhe eram familiares e dar o passo no escuro. Maria pôde consentir porque, acima de todo o complexo de contingências naturais, estava acordada no Único Necessário, Aquele que dava unidade a toda a sua vida, e Maria sabia que Deus, por ser infinito, não pode ser enquadrado em previsões ou em categorias; é, por definição, imprevisível e, por isso, santamente perigoso. Quando tratava com as coisas humanas, ela não se perdia no fluxo contínuo de eventos sensíveis que lhe solicitavam. Mesmo quando se dava a seus compromissos, seu coração se mantinha desperto. "Eu dormia, mas meu coração velava". (Ct 5,2)

Quando o Arcanjo Gabriel lhe foi visitar, embora fosse um anjo de alta hierarquia e, portanto, possuísse as virtudes em grau eminentíssimo, encontrou aí uma humana que estranhamente lhe superava nas duas principais: a humildade e o amor a Deus. O amor a Deus em Maria era tão intenso, diz um escritor devoto, que os próprios anjos poderiam ter descido à casinha de Nazaré para aprender com ela a amar a Deus. Este era o motivo pelo qual Maria era tão acordada.  Não há buda que se lhe equipare. Conhecia bem a efemeridade e vaidade do mundo, descrita em Eclesiastes, e mantinha o seu coração ancorado em Deus pelo que sua alma voava acima de toda preocupação meramente humana.

Gabriel lhe anuncia que, se ela consentir, será a mãe de Deus. Maria era consciente de sua pequenez, e continuamente se define como escrava. Se esta consideração de si mesma fosse meramente natural, Maria teria rejeitado a sua missão justamente por humildade. Mas a sua virtude ultrapassava infinitamente a de qualquer código moral natural. Justamente pela sua humildade abismal, Maria aceita a missão, pois sabia que tudo aquilo se fundamentaria não nela, mas no próprio Deus. Cabia-lhe servir e obedecer. E, no entanto, via que Deus estava se submetendo à sua vontade de criatura.

A pobreza de Maria está justamente aqui. É pobre aquele que se dá e não se busca a si mesmo. Maria, ao intuir a vontade divina, a amou e a quis. "Sim!". Não lhe importava o que seus parentes iriam pensar; não lhe impedia a surpresa que José teria. Não lhe travava o passo sequer o saber que ela poderia vir a morrer apedrejada se acaso José lhe denunciasse ou se o povo judeu ficasse sabendo, de algum modo, que ela havia engravidado antes do casamento. Deus queria. Maria esvaziou-se de si mesma e seu esvaziamento foi total. "Fiat!" "Faça-se". 

No seu esvaziamento, Maria foi tão perfeita que o próprio Deus, também esvaziando-Se de Si mesmo, veio habitar nela. O esvaziado habitou na esvaziada e isto revelou, pela comunhão de atitudes, o grau de intimidade que Maria tinha com Deus desde antes. Em se tratando de Cristo, é São Paulo quem escreve: "Jesus não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a Si mesmo, assumindo a condição de escravo" (Fil 2, 6-7). O ato de aniquilamento de Jesus - chamado de kenose - foi infinito. Com efeito, ninguém é capaz de sondar a distância entre a divindade e a humanidade. Jesus, porém, assume a partir do sim de Sua Mãe uma condição inefavelmente inferior à sua divindade. Jesus não se contentou em enviar-nos graças ou posses Suas; Ele mesmo veio. Assumiu visceralmente a Sua missão, saiu de Si mesmo e deu-Se a Si mesmo. O Senhor do Céu ocupou lugar tão estreito: o seio de uma mulher. O que governa todas as coisas desceu à total submissão à sua criatura. Ser pobre é dar-se.

Foi por ser tão pobre e despojar-se tão inteiramente de si mesma, que Maria pôde receber o Verbo divino, o Pobre, em seu ventre. Maria grávida era um mistério: a humilde por excelência carregava em si mesma a própria Humildade. Note-se, então, que o ato da pobreza sempre ocupa, na história da salvação, lugar central. É ela que abre espaço para Deus. Portanto, podemos inequivocamente concluir: Maria era a plena abertura e docilidade à divindade. Ela era porta aberta à transcendência. Não à toa foi escolhida como caminho de Deus para os homens e dos homens para Deus. A amizade com Deus pressupõe a pobreza. Sejamos pobres. Que a Virgem Maria nos ensine.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Para seguir a Cristo, é preciso deixar os mimos e ilusões


Quando uma criança começa a praticar artes-marciais, o mais comum é que ela esteja influenciada por filmes ou por contos gloriosos de conhecidos seus. Tudo aquilo influi no imaginário dela de forma poderosa. E ela o quer.. Nos filmes, em uma ou duas semanas, o sujeito desajeitado consegue ganhar o campeonato. Nas histórias ouvidas, depois de apanhar um pouco, o protagonista, animado por não sei qual espírito bruceleeniesco, vai pra cima e conquista a vitória. Na vida real, porém, o primeiro dia de treino, não obstante o ânimo quase sobrenatural que inspira o neófito desde dentro, o que ele terá são hematomas, cansaço, sede. E no outro dia, misteriosamente, ele continua o mesmo verminoso fraco de sempre, com a diferença de que o seu ânimo, por algum motivo, arrefeceu.

No cristianismo é assim também. Lemos a vida dos santos e dos grandes defensores da fé. Os relatos dos grandes místicos quase nos extasiam na cadeira. A coragem dos cristeros e cruzados em dar a própria vida nos arrebata ao ponto de quase metermos a cabeça na parede e proclamarmos, em seguida e de algum modo, o nosso martírio. Porém, quando começamos a fazer os sacrifícios cotidianos e o lento processo de morte de nós mesmos e, olhando de lado, não vemos nenhum expectador que possa tomar nota dos nossos atos, ou nenhum fundo musical que possa acrescentar uma carga emocional aos nossos feitos, e notamos, então, que não se passou sequer meia hora e que uma vida inteira nos espera à frente, então vemos como a vida real - graças a Deus - faz questão de mostrar que o mundo e a vida não são como nós supomos. E se tivermos a loucura de questionar a Deus sobre isso, Ele nos dirá algo do tipo: "deixe de tolices".

O cristianismo é um caminho de pessoas reais que vão sofrer de verdade, vão sangrar de verdade, vão gritar vez ou outra: "que se dane isso tudo!", vão chorar sem ninguém ver e vão ter o ego atingido por metralhadoras. É assim mesmo. Essa é a condição. É preciso vencer a ilusão para chegar a ser um campeão de Kung Fu. É preciso vencer a fantasia para chegar à santidade. É preciso abandonar os mimos teletubianos e as mentiras a nosso respeito se queremos chegar a ser seguidores do Cristo. Cristo é a Verdade. O fantástico mundo de Bob tem de ser abandonado. O melhor bem que Deus pode nos fazer é quebrar o nosso mundinho e nos mostrar as coisas como realmente são.

domingo, 7 de julho de 2013

A Graça e a aceitação feliz da nossa dependência total de Deus


As expressões de desmerecimento que a prática cristã põe na boca do fiel soam, para o mundo exterior, como as adulações degradantes e insinceras do bajulador diante do tirano, ou, na melhor das hipóteses, como um modo de falar, à maneira da autodepreciação do cavalheiro chinês ao se referir a si mesmo como "esta pessoa rude e iletrada". Na verdade, porém, elas expressam uma tentativa permanentemente renovada - porque permanentemente necessária - de refutar um equívoco sobre nós mesmos e sobre nossa relação com Deus que a natureza está nos sugerindo, mesmo quando rezamos. Tão logo acreditamos que Deus nos ama, imediatamente vem o impulso de acreditar que ele o faz não porque ele é Amor, mas porque nós somos intrinsecamente amáveis. Os pagãos obedeciam a esse impulso imperturbavelmente: o bom homem era "querido pelos deuses" por ser bom. Nós, tendo sido mais bem informados que eles, recorremos a subterfúgios. Longe de nós pensar que temos virtudes pelas quais Deus nos amaria. Mas veja só que magnífico o nosso arrependimento! Como diz Bunyan, descrevendo sua primeira e ilusório conversão: "Eu pensava que não havia ninguém na Inglaterra que agradasse mais a Deus do que eu". Quando nos dissuadimos dessa idéia, oferecemos a Deus nossa humildade para que ele admire. Disso ele vai gostar, não? Ou então oferecemos nossa nítida e humilde admissão de que ainda nos falta humildade. Assim, camada após camada e sutileza após sutileza, permanece em nós a obstinada idéia de que temos algum atrativo nosso, e só nosso. É facil admitir, mas quase impossível perceber por muito tempo, que somos espelhos cujo brilho - se é que o temos - deriva inteiramente do Sol que resplandece sobre nós. Mas certamente temos alguma luminosidade natural, por menor que seja, não? Não somos apenas criaturas, certo?

A graça substitui esse intrincado absurdo de uma necessidade, ou mesmo de um Amor-Necessidade, que jamais reconhece inteiramente a própria indigência por uma aceitação plena e infantil de nossa Necessidade - pela alegria da dependência total. Nós nos tornamos "mendigos felizes". O bom homem se entristece pelos pecados que lhe intensificaram a necessidade. Mas não se entristece de todo pela nova necessidade que produziram. E não se entristece nem um pouco pela necessidade intrínseca a sua condição de criatura. Afinal, essa ilusão a que a natureza se apega como último recurso, essa pretensão de que temos algo realmente nosso ou de que seríamos capazes de conservar, por uma hora, com nossas próprias forças, alguma bondade que Deus eventualmente tenha nos outorgado nos impede o tempo todo de ser felizes. Somos como um banhista tentando manter os pés - ou um dos pés, ou um dedo - no fundo do mar, porque perder o pé seria render-se a um glorioso abandono às ondas. As consequências de romper com nossa última pretensão de liberdade, poder ou valor intrínsecos são a liberdade, o poder e o valor verdadeiros, realmente nossos, simplesmente porque Deus os dá e por sabermos que (em outro sentido) não são "nossos". Anodos se livra de sua sombra.

C.S. Lewis, Os Quatro Amores. São paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p.181-182.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

I dreamed a dream - Les Miserables

Estive há bastante tempo esperando pra assistir esse musical, e o fiz no último dia 16. Espetacular. Deixo a recomendação e ponho abaixo esta música, interpretada de modo estupendo, e que acompanha uma das cenas mais emocionantes do filme.

sábado, 15 de junho de 2013

A espera e a posse

Na nossa vida, existe uma assimetria no tempo que se dá pela existência de momentos ou períodos qualitativamente mais significativos que outros. Assim são, por exemplo, o dia do aniversário, o dia do casamento, o tempo das férias ou a visita de um querido amigo ou parente. O momento exato representa o pico; é o auge, o êxtase. E de tão tão importante, ele acaba possuindo a faculdade de transbordar para os momentos exatamente anteriores e, de modo menos intenso, aos posteriores. Este transbordamento para trás se estende até um certo ponto e toda a área que fica assim mudada é o que se chama de espera.

A espera, embora derive do que poderíamos chamar de "presença", sendo um tipo de presença antecipada - de modo que esperar é, já, um modo de possuir o que virá - possui, não obstante, um certo brilho especial e que lhe é peculiar. A diferença entre a espera e a posse não é apenas de grau. Há uma ansiedade na primeira que não há na segunda. Elas são, portanto, diferentes, embora, como dissemos, a primeira derive da segunda.

Ponhamos, então, a nossa atenção na espera. Este seu ponto mais característico é tão interessante que comumente se diz que o que buscamos, não o buscamos pela posse, mas somente pela própria busca. Diz-se que, para alguns, o processo de conquista de um amor é mais prazeroso do que o alcance dele. Existem os aventureiros que precisam sempre estar à espera de algo. A espera, então, tem a sua importância particular. Às vezes, ela parece mais significativa do que a posse, pois ela foi o processo em que se construiu toda uma expectativa que, infelizmente, superou a realidade do objeto esperado. Além disso, às vezes a vinda do que se espera passa tão rápido que o tempo de espera lhe parece, depois, ter tido mais substância. Quando o momento aguardado vem e vai, começa um outro processo de dissolução. Se a montanha da expectativa foi crescendo gradativamente, uma vez passado o momento esperado, não apenas começa-se a descer, mas a descida é muito mais rápida e o sentimento é totalmente diverso. Antes, a expectativa, embora diferente, era de algum modo similar à posse. Agora, porém, inicia-se um processo de "resfriamento" que difere da natureza do calor daquilo que foi, antes, vivido. A dissolução é de natureza diversa da da posse.

É muito interessante notar que, quando tratamos do Cristianismo, não há esse terceiro momento aí, o da dissolução. Enquanto aqui estamos, há sempre a espera que se intensifica à medida que avançamos. Há um encontro pelo qual esperamos. É um tempo significativo e suficiente para criarmos uma grande expectativa do objeto esperado. Porém, por maior que seja tal expectativa, ela fica sempre muito aquém daquilo que é esperado. Depois da espera virá a presença. E aqui está algo belíssimo: ela não passa. Ela vem e se perpetua. Ela não cansa. Ela preserva a fome da espera, mas sem o sofrimento, e nos dá a posse do alimento, mas sem o enfado. E nunca virá a dissolução. Lá haverá o feliz e vibrante repouso. Esperemos, pois! 

Vale a pena! 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Meditação sobre a morte


A vida é um mistério. Embora ela, aqui em baixo, seja passagem contínua, é toda permeada da vontade de não passar, do desejo do eternizar-se. E, no entanto, o curso das coisas não cessa. Houve um momento em que nascemos e haverá um momento em que morreremos. Sair da vida, o que significa? Qual o sentido daquele desejo de perenidade que cultivávamos se, por acaso, é falso que ele se realiza? Seria o caso de sermos seres profundamente mentirosos e que se aferram a ilusões? Não... Repugna-nos a morte, não por acaso. Satisfazemo-nos com verdades imutáveis, não por acaso. Estamos a vida inteira orientados, como bússolas obstinadas, para o bem - ou aquilo que julgamos sê-lo -, não por acaso. Se, de um lado, fazemos a experiência da efemeridade, do devir, da mudança, em nosso íntimo, naquilo que temos de mais essencial, somos todos sedentos de eternidade, de constância. Esta tensão entre uma coisa e outra é a grande responsável pela nossa atual inquietude, por estarmos sempre insatisfeitos e sempre a buscar novos bens. "O nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Ti". Também não foi à toa que Jesus se definiu como a Rocha, símbolo de firmeza e permanência.

A morte é somente uma passagem, embora pareça término. Uma porta também é somente uma aparência de limite. Quando ela está fechada, não nos permite enxergar do outro lado, embora nos faça supor que há uma vastidão não vista para além dela e para a qual ela é somente uma transição. Comparada à eternidade, esta vida é uma pequena choupana ou, nos dizeres de Sta Teresa D'Avila, é "uma má noite numa má pousada". Horizontes insuspeitados aguardam do outro lado e, no entanto, enquanto a porta não abrir, tais horizontes apenas podem ser supostos. Também haverá quem diga que a realidade se reduz ao casebre e que não há nada que o transcenda. Estes mutilaram em si o que havia de mais essencial. Deus deu asas aos homens para que, uma vez aberta aquela porta, eles pudessem alçar vôo e sentir, pela primeira vez mas nostalgicamente, a delícia do vôo e da contemplação do sol.

Quando olhamos para a morte, parece-nos o fim. Mas é preciso estar muito embotado para ficar insensível à dimensão do mistério que ali se adensa. A morte é uma passagem. A realidade, densa, firme, total, começa depois dela.

domingo, 5 de maio de 2013

O perigo das experiências espirituais imaginadas


O abuso perigoso das imagens e do símbolo pode ser constatado, por exemplo, no caso de alguém que tenta fazer surgir uma "chama viva" pelo exercício da vontade, da imaginação e do desejo e se persuade, então, a si próprio, de que teve a "experiência de Deus". Num tal caso, ter-se-ia de pagar muito caro essa evidente fabricação, pois existe uma diferença total entre os frutos de uma autêntica experiência religiosa, puro dom de Deus, e os resultados de nossa imaginação. Como declarou sem rodeios Jacob Boehme: "Onde encontramos nas Escrituras que uma prostituta pode tornar-se virgem por simples decreto?"

A experiência viva do amor divino e do Espírito Santo na "Viva Chama", a que se refere S. João da Cruz, é uma verdadeira consciência que se tem de haver morrido e ressuscitado em Cristo. É uma experiência de renovação mística, uma transformação interior ocasionada unicamente pelo poder do amor misericordioso de Deus, que implica a "morte" do ego autocêntrico e auto-suficiente e o surgir de um novo ser libertado, que vive e age "no Espírito". Mas, se o antigo eu, o ego autônomo e calculador, procura apenas imitar os efeitos de uma tal regeneração, para a satisfação e vantagem próprias, o efeito é exatamente o oposto: o ego procura afirmar-se em sua própria existência egoísta. O grão de trigo não penetrou na terra e não morreu. Permanece duro, isolado e seco; não há fruto nenhum, apenas um gabar-se mentiroso e blasfemo - um ridículo fingimento!

Se a mentira e a invenção, do ponto de vista psicológico, são perniciosas mesmo nas relações comuns com outras pessoas (uma álea onde uma certa medida de falsificação não é rara), toda falsidade é desastrosa em qualquer relação com a base de nosso próprio ser e com Deus que a nós se comunica através de nossa própria verdade interior. Falsificar nossa verdade interior, sob pretexto de nos unirmos a Deus, seria a mais trágica infidelidade, a nós mesmos em primeiro lugar, à vida, à própria realidade, é claro, a Deus

Thomas Merton, Poesia e Contemplação

quarta-feira, 1 de maio de 2013

A noite escura


Na "noite escura" dos sentimentos e dos sentidos, sente-se, por vezes frequentemente, angústia na oração. É necessário que assim seja, pois essa noite marca a transferência do pleno e livre controle de nossa vida interior para as mãos de um poder superior. E isso significa, também, que o tempo da obscuridade é, de fato, um tempo de riscos e difíceis opções. Começamos a sair de nós mesmos: isto é, somos arrastados para fora de nossas habituais e conscientes defesas. Essas defesas são também limitações que devemos abandonar se queremos crescer. Mas são elas, ao mesmo tempo, a seu modo, uma proteção contra as forças inconscientes demasiadamente grandes para enfrentarmos desnudados e sem proteção.

Se avançarmos nessa escuridão, teremos de encontrar-nos com essas inexoráveis forças. Teremos que enfrentar temores e dúvidas. Teremos de questionar toda a estrutura de nossa vida espiritual. Teremos que fazer uma nova apreciação daquilo que nos tem motivado a crer, a amar, a nos engajarmos em relação ao Deus invisível. E, nesse momento precisamente, toda luz espiritual é obscurecida, todos os valores perdem sua forma e se diluem, parecem não ter realidade e ficamos, por assim dizer, suspensos no vácuo.

O aspecto mais crucial dessa experiência é exatamente a tentação de duvidar do próprio Deus. Não devemos minimizar o fato de ser isso um verdadeiro risco. Pois, aqui, estamos nos adiantando e ultrapassando a fase em que Deus se tornou acessível à nossa mente por meio de simples e primitivas imagens. Estamos penetrando na noite em que Ele está presente sem qualquer imagem, invisível, imperscrutável e situado além de qualquer representação mental satisfatória.

Num momento desses, alguém que não esteja seriamente fundamentado numa autêntica fé teológica pode tudo perder do que tenha possuído. Pode sua oração tornar-se uma luta obscura e detestável para preservar as imagens e os enfeites que disfarçavam o vácuo interior. Deverá ele então enfrentar a verdade de seu vazio ou bater em retirada voltando ao domínio das imagens e analogias que não mais sirvam a uma vida espiritual madura. Poderá ele não ser capaz de enfrentar a tão terrível experiência de estar aparentemente sem fé, de maneira a nela realmente crescer. Pois é este o teste, este o fogo de purificação que queima até às cinzas os elementos humanos e acidentais da fé, de modo a libertar o profundo poder espiritual que existe no centro de nosso ser. 

Devastarei sua vinha e sua figueira, das quais dizia: eis a paga que me deram meus amantes. Farei delas um matagal, que os animais selvagens devorarão. Por isso a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração. Dar-lhe-ei as suas vinhas e o vale de Acor, como parte de esperança. Aí ela se tornará como no tempo de sua juventude, como nos dias em que subiu da terra do Egito. Não lhe deixarei mais na boca os nomes dos Baals e ninguém pronunciará tais nomes. Farei para eles, naquele dia, uma aliança com os animais selvagens, as aves do céu e os répteis da terra; farei desaparecer do país o arco, a espada, a guerra e os farei repousar com segurança." (Os 2, 14;16-17; 19-20).
 Thomas Merton, Poesia e Contemplação

O conhecimento místico de Deus


O conhecimento unitivo e místico de Deus é "uma escuridão inefável e, contudo, uma luz essencial. Chama-se um incompreensível e solitário deserto. E isto certamente o é. Ninguém pode encontrar seu caminho ao atravessá-lo, nem ver alguns marcos, pois não existem tais pontos de referência que, pelos homens, possam ser reconhecidos. Por "escuridão" deve-se aqui entender uma luz que jamais iluminará uma inteligência criada; uma luz que jamais poderá ser naturalmente compreendida. Chamam-na de desértica, pois não há qualquer estrada que a ela conduza. Para ali chegar tem a alma de ser levada a ultrapassar-se para além de todo o seu entendimento. Pode, então, beber das águas do riacho em sua própria fonte, daquelas águas verdadeiras e essenciais. Nessa fonte, a água é agradável, fresca e pura como todo riacho é agradável antes de haver perdido seu delicioso frescor e pureza."

Tauler, Conferências Espirituais

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O mal e a tentação


"Nenhum homem sabe quão mau ele é, até que ele tenha tentado de toda maneira ser bom. Uma idéia tola, mas muito atual é que as pessoas boas não conhecem o significado ou não passam por tentações. Isto é uma mentira óbvia. Só aqueles que tentam resistir à tentação, sabem quão forte ela é. Afinal de contas, você descobre a força do exército inimigo lutando contra ele, não cedendo a ele. Você descobre a força de um vento, tentando caminhar contra ele, não se deitando ao chão. Um homem que cede ante a tentação depois de cinco minutos, simplesmente não sabe o que teria acontecido se tivesse esperado uma hora. Esta é a razão pela qual as pessoas ruins, de certa forma, sabem muito pouco sobre sua maldade. Elas viveram uma vida abrigada por estarem sempre cedendo. Nós nunca descobrimos a força do impulso mal dentro de nós, até que nós tentamos lutar contra ele: e Cristo, porque Ele foi o único homem que nunca se rendeu a tentação, também é o único homem que conhece completamente o que tentação significa–o único realista no total sentido da palavra".

C. S. Lewis