segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Conversa entre Jill e Aslam


Ao parar, Jill sentiu uma sede enorme. Havia chorado de cara contra o chão, mas agora estava sentada. As aves não cantavam mais. O silêncio seria total, não fosse um barulhinho insistente que parecia vir de longe. Ouviu com atenção e teve quase certeza de que se tratava de água corrente.

Levantou-se e olhou em torno, atenta. Nenhum sinal do Leão [1], mas, com tantas árvores por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A sede era intolerável e ela juntou coragem para localizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-se de árvore em árvore, espreitando por todos os cantos, avançou. A floresta estava tão quieta que não era difícil descobrir de onde vinha o ruído. Numa clareira corria o riacho, brilhante como um espelho. Apesar da visão da água multiplicar sua sede, não correu logo para beber. Ficou paradinha, como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o Leão estava postado exatamente à beira do riacho, cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dos olhos dela por um instante e virou-se para o lado, como se a conhecesse há muito tempo e não precisasse dar-lhe muita atenção.

Ela pensou: "Se eu correr, ele me pega; se eu ficar, ele me come." [2]

De qualquer forma, mesmo que tivesse tentado, não teria saído do lugar. Não tirava os olhos de cima do Leão. Quanto tempo durou isso não saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tão forte que chegou a pensar que pouco se importaria em ser comida pelo animal, desde que desse tempo de beber um bom gole.

- Se está com sede, beba. [3]

Eram as primeiras palavras que ouvia desde que Eustáquio falara com ela à beira do abismo. Por um segundo procurou descobrir quem falara.

A voz voltou:

- Se está com sede, venha e beba.

Lembrou-se naturalmente do que dissera Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não se parecia com a voz humana: era mais profunda, mais selvagem, mais forte. Não ficou mais amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada de um modo diferente.

- Não está com sede? - perguntou o Leão.

- Estou morrendo de sede.

- Então, beba.

- Será que eu posso... você podia... podia arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato a sede?

A resposta do Leão não passou de um olhar e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao defrontar o corpanzil) como pedir a uma montanha que saísse do seu caminho.

O delicioso murmúrio do riacho era de enlouquecer.

- Você promete não fazer... nada comigo... se eu for?

- Não prometo nada - respondeu o Leão. [4]

A sede era tão cruel que Jill deu um passo sem querer.

- Você come meninas? - perguntou ela.

- Já devorei meninos e meninas, homens e mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos - respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso, sem raiva, com a maior naturalidade.

- Perdi a coragem - suspirou Jill.

- Então vai morrer de sede.

- Oh, que coisa mais horrível! - disse Jill dando um passo à frente. - Acho que vou ver se encontro outro riacho.

- Não há outro - disse o Leão. [5]

Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar do Leão [6]; bastava olhar para a gravidade de sua expressão. De repente, tomou uma resolução. Foi a coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhou até o riacho, ajoelhou-se  [7] e começou a apanhar água na concha da mão. A água mais fresca e pura que já havia bebido. E não era preciso beber muito para matar a sede. Antes de beber, havia imaginado sair em disparada logo depois de saciada. Percebia agora que seria a coisa mais perigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.

- Venha cá - disse o Leão.

E ela foi. Estava agora quase entre as patas dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nos olhos. Mas não aguentou isso por muito tempo e desviou o olhar. [8]

- Criança humana - disse o Leão -, onde está o menino?

- Caiu no abismo - respondeu Jill, acrescentando: - ... Senhor. [9] - Não sabia como tratá-lo e seria uma desfeita não lhe dar tratamento algum.

- Como foi isso?

- Ele estava querendo me segurar, para eu não cair.

- Por que você chegou tão perto do abismo, criança humana?

- Eu queria fazer bonito, senhor.

- Gostei da resposta, criança [10]. Não faça mais isso. - Pela primeira vez a face do Leão mostrou-se um pouco menos severa. - O menino está bem. Foi soprado para Nárnia. A sua missão é que ficou mais difícil.

- Qual missão, por favor?

- A missão que me fez chamá-los aqui, fora do mundo de vocês.

Jill ficou intrigadíssima, achando que o Leão a tomava por outra pessoa. Não tinha coragem de revelar isso, apesar de sentir que podia dar uma confusão medonha.

- Diga o que está pensando, criança. [11]

- Eu estava imaginando... quer dizer... não está havendo um engano? Acontece que ninguém chamou a gente aqui. Nós é que pedimos para vir. Eustáquio disse que devíamos chamar... alguém... não me lembro do nome... e que esse alguém talvez nos deixasse entrar. Foi o que fizemos, e então encontramos a porta aberta.

- Não teriam chamado por mim se eu não houvesse chamado por vocês. [12]

- Então o senhor é o Alguém? - perguntou Jill.

- Sim."

C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, A Cadeira de Prata, Cap. 2.

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A numeração no texto foi feita por mim. Quero somente comentar brevemente a respeito destes pontos.

1- Penso ser sabido que as Crônicas de Nárnia são uma estória de fundo cristão. Aslam é naturalmente um símbolo de Jesus. Interessante ser o Cristo representado por um Leão, pois: 1- O leão comumente simboliza a majestade; 2- "Leão de Judá" é um dos nomes dados a Jesus na Sagrada Escritura.
2- Uma suposição errada fundamentada no medo e que só faz perder tempo. Muito comum.
3- Assemelha-se ao que Jesus diz: "Quem estiver com sede, venha a Mim, e beba". Deste modo, o riacho pode querer representar o próprio Aslam, ou o Cristo.
4- Só compreendendo como o Aslam é bondoso para apreciar o gracejo. Além disto, é óbvio que Ele não poderia prometer não influenciar de nenhum modo; isso seria impossível. Mas o fato de não explicar a expressão, revela um bom humor delicioso que Lewis atribui a Deus.
5- Aqui parece haver uma referência à absoluta exclusividade do Cristo. De fato, não há outro em quem podemos nos saciar, ou, nos dizeres de S. Pedro: "A quem iremos se só Tu tens a vida?"
6- Sendo o Cristo a própria verdade, não é possível duvidar d'Ele quando estamos na Sua presença, a menos que sejamos totalmente corruptos interiormente.
7- O fato de ajoelhar-se antes de beber da fonte é muito significativo.
8- Aqui há uma coisa interessante. S. João da Cruz, expressando o olhar de Cristo, escreve: "Aparta-os, Amado, que eu alço vôo". Sta Teresa diz o mesmo, completando que, embora o olhar enamorado do Cristo seja o que a pessoa mais deseja, no entanto, ela como que não o suporta e termina por pedir que Ele os afaste. Estas referências místicas parecem se fundamentar no livro dos Cânticos, onde se diz algo similar.
9- O fato de Jill querer usar algum tipo de tratamento, demonstra que ela reconhecia estar diante de uma autoridade. Jesus, embora despido de suas vestes reais, é Rei pela própria natureza. Sta Teresa D'Avila dizia justamente isto: "a Realeza é algo que Lhe pertence". Na primeira das Crônicas de Nárnia, o castor, referindo-se a Aslam, diz: "Ele é Rei, digo e repito". Quando estamos diante d'Ele, é natural que assumamos uma atitude de máximo respeito. Observar a atitude dos reis Magos quando, ultrapassando o véu das aparências, deram-se conta de Quem estava diante deles. Comentando sobre este episódio, S. Pedro Julião Eymard escreve: "curvar-se-iam até as entranhas da terra, se pudessem".
10- Jesus é grande amigo da sinceridade. Lembremos da parábola da festa, onde alguém surge sem as vestes apropriadas. Interrogado sobre a causa de estar ali sem a roupa devida, o rapaz não responde nada. Não disse nada porque não é possível dissimular ou inventar desculpas diante do Cristo. Nosso Senhor ama a verdade. Diante d'Ele, é preciso uma total sinceridade e transparência.
11- Aqui, mais uma vez, Jill pretendia ocultar algo que pensava. Mas Aslam lhe pede mantenha a transparência.
12- Lembrar aqui do que Jesus fala: "Ninguém vem a Mim se antes o Pai não o atrair".

2 comentários:

Susana disse...

Também tive a impressão quando assisti o filme. Acredito que o Leão representa o Cristo. Leia a biografia do escritor na Wiki que dá pra entender melhor.

Fábio Graa disse...

Ora, se não é a Susana: uma das quatro escolhidas de Aslam! ^^

Sim, Susana! O Lewis foi um grande apologeta cristão do século XX. Gosto muito dele.

Aqui diz alguma coisa sobre o Lewis
http://www.youtube.com/watch?v=JqzE0qzBilY

Abraço.