S. Vicente de Paulo (como se lê na sua Vida, escrita por Domino Coste, I, 12; III, 300) narra um fato que lhe sucedeu quando estava no colégio: «Certo dia, disseram-me: "teu pai veio te ver" e, como meu pai era um pobre agricultor e um homem rude, não quis ir até ele para conversar; e antes, quando meu pai me conduzia à cidade, estava triste pela sua condição, e me envergonhava de meu pai».
O mesmo santo, falando do tempo posterior da fundação da sua Congregação, diz: «veio o filho do meu irmão me visitar no Colégio onde era superior e eu, considerando a situação muito modesta do meu sobrinho, que se vestia rudemente, ordenei que me fosse ele conduzido secretamente. Mas, imediatamente, mudei minha deliberação com a resolução de reparar este primeiro movimento de amor próprio, desci até o portão, e abracei meu sobrinho e, conduzindo-o pela mão pela sala comum onde estavam meus confrades, disse a eles: ´Eis a pessoa mais honorável de minha família´». Assim, S. Vicente de Paulo vencia seu amor próprio, e ainda temia que, nessa vitória, o amor próprio se escondesse sutilmente.
Perigo que nasce das evasões e subterfúgios usados pelo amor próprio
Por exemplo, a oração mental se vicia pelo excessivo desejo de consolações sensíveis, pela gula espiritual, pelo sentimentalismo. O sentimentalismo é, na sensibilidade, uma afetação de amor de Deus e do próximo que não existe suficientemente na vontade espiritual. Então, a alma procura a si mesma mais que a Deus. Donde, para tirar a alma desta imperfeição, Deus purifica a alma pela aridez da sensibilidade.
Se, verdadeiramente, a alma nesta aridez não é suficientemente generosa, cai na preguiça espiritual, na tepidez e não mais tende suficientemente à perfeição.
Que se deve fazer contra este amor desordenado?
Temos de conhecer e lutar contra nosso defeito dominante para obter a vitória. O defeito dominante é como que uma caricatura da boa inclinação que deveria prevalecer, é como que o «outro lado da moeda». Daí surge o combate entre a boa e a má inclinação. A virtude e o vício oposto não podem existir simultaneamente em ato no mesmo sujeito, mas podem existir simultaneamente em potência; daí surge o combate em que prevalecerá ou a boa inclinação natural, sob a forma da virtude em ato, ou o defeito dominante, sob a forma do vício em ato.
Assim, o defeito dominante inicial é aquilo pelo qual alguma virtude degenera em um vício materialmente similar, mas formalmente contrário, por exemplo, a inclinação à humildade degenera em pusilanimidade, a inclinação à magnanimidade em soberba e ambição, a inclinação à fortaleza em amarga ironia e crueldade, inclinação à justiça em rigorismo, inclinação à mansidão e à misericórdia em debilidade. Isto compreende-se melhor quando se considera, por exemplo, que a humildade se opõe mais diretamente à soberba que a pusilanimidade, que, no entanto, também lhe é contrária, assim como a magnanimidade mais diretamente se opõe à pusilanimidade que à soberba. E estas duas virtudes são conexas, como dois arcos da mesma ogiva.
Portanto, é necessário ver sob qual forma este amor próprio prevalece em nós, isto é, se sob a forma de soberba, ou de vaidade ou de preguiça, ou de sensualidade, ou de gula, ou de ira. Em outras palavras, é preciso saber qual é nosso defeito dominante, que se manifesta nos nossos pecados mais freqüentes e que oferece alimento a nossa fantasia.
Em alguns a soberba, por exemplo, vence a irascibilidade para conservar a estima dos homens; em outros, a soberba é vencida pela preguiça e não cuida mais da estima alheia.
Deve-se vigiar, portanto, para refrear o defeito dominante e isto com tenacidade e perseverança para adquirir o domínio de si mesmo, não pela estima dos outros, mas por Deus. Isto é sempre possível no nosso caminho, ainda que seja sempre árduo. Deus não pede o impossível, mas nos adverte a fazer tudo que podemos e pedir tudo que não podemos, e nos ajuda para que consigamos.
Outros homens não tem um defeito manifestamente dominante, mas o seu amor próprio se manifesta de diversos modos.
O amor próprio deve ser combatido de diversos modos, eliminando-se o que o pode alimentar e agindo mais e mais por amor de Deus, para que o agrademos, primeiro nas coisas externas e obrigatórias e fáceis de se cumprir com espírito de fé; depois nas coisas interiores e difíceis, de modo que, paulatinamente, as três virtudes teológicas prevaleçam em nossa vida, com seus correlativos dons.
Nesta metódica luta, três coisas se exigem: pureza de intenção, abnegação progressiva, recolhimento habitual.
1. A pureza de intenção é de suma importância. Diz o Salvador [Lc 11, 34]: «O teu olho é a lucerna do teu corpo. Se o teu olho for puro, todo o teu corpo terá luz; se porém, for mau, também o teu corpo será tenebroso». S. Tomás comenta: «O olho significa a intenção. Ora, quem quer fazer algo, tem alguma intenção. Se tua intenção for luminosa, isto é, dirigida a Deus, todo teu corpo, ou seja, suas operações, serão luminosas». Isto se vê em todo bom católico e em todo bom prelado que guia bem o seu rebanho.
Esta pureza de intenção deve ser mantida primeiro nas coisas mais fáceis e ordinárias. S. Bento formava seus religiosos, que não costumavam ser de grande cultura, dizendo-lhes: «fazei com intenção pura, em espírito de fé, esperança e amor de Deus, para agradar a Deus, todos os atos determinados na regra»; e os religiosos, conversos, fazendo com este espírito e com esta pureza de intenção os atos externos da vida religiosa, atingiam grande perfeição, união com Deus, uma grande santidade e uma perfeita vitória sobre o amor próprio desordenado; assim, faziam um grande bem ao próximo. Como se lê no Evangelho (Lc 16, 10): «O que é fiel no pouco, também é fiel no muito», e será mesmo no martírio. S. Agostinho também diz: «o mínimo é, em si mesmo, mínimo; mas ser sempre fiel, até nas coisas mínimas, isto é o máximo».
2. Deve-se manter uma abnegação progressiva, externa e interna, segundo aquilo: «Aquele que quer seguir-me, negue-se a si mesmo». Há de se praticar sempre que a ocasião se apresente, para que o amor de Deus e do próximo prevaleça sobre nosso desordenado amor próprio. Isto, que é necessário aos simples fiéis que aspirem à perfeição da caridade, expressa no primeiro preceito «amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração», segundo a condição de cada um, é ainda mais necessário ao sacerdote, sobretudo se tem almas sob seu cuidado.
3. O recolhimento habitual é necessário para conservar a união com Deus, não somente durante a celebração da Missa, confissões ou pregação da palavra divina, mas constantemente.
Pe. Garrigou Lagrange, O amor próprio ou o maior impedimento à vida de Cristo em nós
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