Dizíamos, antes, que o mal não pode ser substância; este é também o motivo pelo que a soberba, na sua revolução contra a verdade, nada pode fazer senão distorcê-la, associando-se, para tal, a substâncias e valores existentes.
Como seres humanos, nós temos várias necessidades e aptidões naturais cujas satisfações e exercícios constituem um bem. Eis alguns exemplos: temos uma inclinação à preservação da vida, decorrente da Lei Natural; temos a necessidade de nos alimentarmos; somos naturalmente orientados à busca da verdade e em geral canalizamos as nossas ações para aquilo que nos parece ser um bem, atitude decorrente de uma sede intrínseca de felicidade que existe no ser humano. Temos ainda uma tendência à procriação, entre outras coisas. Tudo isto, vivido com ordem, tende a contribuir para que o homem se realize em sua natureza.
O que, porém, a soberba faz? Ela associa-se a cada uma dessas necessidades e aptidões e as distorce. Desse modo, a inclinação à preservação da vida se torna egocentrismo e fuga de todo e qualquer desprazer - no sentido negativo, se torna medo neurótico. A necessidade de nos alimentarmos se degrada em uma das formas de gula (a gastrimargia ou a laudamargia)*; a inclinação natural à verdade se torna curiosidade; a busca do bem e da felicidade se converte em mera busca de prazer; a tendência à procriação se perverte em luxúria. Eis o retrato do homem egoísta.
Acontece, porém, que desviada assim a finalidade de todas essas nossas aptidões, elas terminam impedindo o termo natural do ser humano que é a felicidade. Ausentado deste bem, o homem busca distrair-se continuamente com a posse de prazer. Este se torna o critério para as suas ações e escolhas: o que causa prazer é buscado; o que causa desprazer é evitado. Deste modo, nubla-se a dimensão transcendente e reduz-se tudo ao âmbito subjetivo. Os valores perdem seu fundamento ontológico e tornam-se relativizados. Não há mais uma primazia do real, o que causa um embotamento da inteligência que, a partir de então, anda ocupada predominantemente com o seu drama egoísta de encontrar prazer e de evitar a dor. Tudo se reduz ao seu tamanho. Retirou-se o sol do centro; caiu-se no egocentrismo.
Este tipo de sujeito não percebe o valor intrínseco das coisas; vive preocupado com a própria imagem; pode se tornar avarento, luxurioso, guloso, etc. É incapaz de fazer sacrifícios, de sofrer em silêncio, de mortificar-se. Sua alma é um tumulto de caprichos e banalidades. A soberba tende a se tornar hábito, isto é, vício e, para que o homem recupere a saúde, torna-se necessário a intervenção de um outro. Em seguida, comentaremos algumas sutilezas deste processo, não ainda de intervenção, mas das implicações interiores da soberba, sobretudo na confecção de ameaças imaginárias.
Por fim, convém sintetizar toda a dinâmica da soberba nestas duas características, que, na verdade, não são mais que uma só, vista sob aspectos diversos: "A busca do prazer, e a fuga da dor". Disto surgem as quatro paixões fundamentais, abordadas por vários filósofos e retomadas por Boécio e por S. João da Cruz:
1 O gozo
2 A dor
3 A esperança - expectação do gozo
4 O medo - expectação da dor
* Gastrimargia é a gula que consiste em comer muito. Laudamargia é a gula que consiste em comer só o que satisfaz o paladar.
Fábio
Fábio
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