sábado, 31 de dezembro de 2011

Com vocês, uma das minhas queridas - Brooke Fraser


A dor humana após a Cruz


"Desde então (desde a Cruz), toda dor sofrida por um cristão está liberada desse terrificante Indefinido, desse insondável vinco do sofrimento que devia, antes, torná-la tão terrível, e que a torna ainda tal aos olhos dos descrentes que, para não vê-la, precipitam-se na morte. A doutrina católica circunscreve toda a possibilidade da dor humana nos intransponíveis limites de uma Dor divina, absoluta e sinteticamente perfeita. E, como essa Dor é o contrário de uma prodigiosa prevaricação - posto que se tratava de remediar, sem destruir a liberdade do homem -, torna-se evidente que ela não podia realmente se produzir senão com o acompanhamento do perpétuo entusiasmo de um amor sem limites. É o que a linguagem católica chama, energicamente, de a Loucura da Cruz."

Léon Bloy

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O modo como Deus nos vê é o modo como nós somos


Sto Agostinho, nas suas especulações filosóficas, chegou à constatação de que ele não era a causa de si mesmo. Logo, devia sua existência a um outro. Esta assertiva pode parecer banal, mas a modernidade se caracteriza quase toda por negar esta verdade evidente.

As pessoas da antiguidade e do medievo se distinguem pela sobriedade e o bom senso de se saberem contingentes. Esta consciência lhes dá uma abertura para fora, para Aquilo que as causou e, diante do fato da morte, para aquilo que há para além deste vértice da vida natural. O homem se via como um ser entre duas eternidades e isto, pelo senso das proporções, lhe mantinha a modéstia e o respeito diante da dimensão do mistério.

A modernidade, no entanto, cortou as duas eternidades e rechaçou as investigações metafísicas, como se fossem qualquer coisa de misticismo, no mal sentido. Este tipo de filosofia de meia tigela produziu teóricos que afirmam bobagens como dizer que as coisas só existem porque o sujeito as percebe, etc. Não mais o homem é colocado por um outro num mundo que já existia, mas, agora, ele existe primeiro e cria o mundo ao percebê-lo. Não é preciso muito esforço para reconhecer que isto é só uma faceta do sonho adâmico de querer ser como Deus.

Pois bem. Uma pessoa que siga um tal tipo de crença terminará por fazer da sua vida uma contínua falsidade. Primeiramente, porque terá uma visão totalmente equivocada da própria existência; depois, porque não aceitaria uma vida que lhe foi dada por Outro, reclamando para si autonomia absoluta. Temos, então, um sujeito que está impossibilitado de realizar-se porque desconheceu o seu chamado individualíssimo e quis, ao invés disto, seguir os próprios devaneios.

A constatação agostiniana de que o homem não é causa de si mesmo é importantíssima. S. Francisco de Assis, um santo que nunca teve aulas de Filosofia, partilhava, no entanto, da mesma sabedoria e a expressou e completou ao dizer que o homem é o que é diante de Deus, e nada mais*. Na verdade, para saber disso, não é preciso estudar filosofia, mas tão somente ter bom senso. Em S. Francisco, porém, esta percepção é agudíssima e significa: não importa o que os homens façam nem as suas conquistas e realizações, se estas conquistas e realizações somente o são segundo seus critérios pessoais. Existem critérios reais pelos quais uma coisa se torna conquista e realização ou, ao contrário, se converte em mero fracasso floreado, em excremento enfeitado de lacinho e borrifado com lavanda.

Se alguém chega a ser aclamado como gênio mas, diante de Deus, ele não passa de um idiota, a verdade é que ele é um idiota. Eis a imbatível e irrefutável filosofia franciscana.

Com base nisto, o que deveríamos fazer? Deveríamos harmonizar os nossos critérios com os de Deus. O que Deus entende por bem, é o bem. O que Deus entende por inútil, é inútil. A conversão passa por aí: é uma adaptação de si mesmo a Deus, e não uma adaptação de Deus a si, como têm tentando fazer alguns, com resultado risível. É justamente por isto que a vida devota é por vezes referida como um processo de morte pelo qual obtemos a vida. Quem se apega à própria vida, isto é, aos seus conceitos pessoais, ao seu modo único de ver, etc., vai terminar não encontrando a vida de fato. Quem, ao contrário, aceita perder-se e desapega-se de si mesmo, encontrará o Caminho, a Verdade e a Vida, que o ensinará e o fará ver.

A nossa época é particularmente imbecil porque é a época em que cegos se vangloriam da própria cegueira e da própria escuridão, desprezando a luz e a visão. Tudo isto, contudo, não é mais que soberba e revolta. E as consequências desta infantilidade são seríssimas e podem se estender pela eternidade.

De tudo isto, podemos concluir que o modo como Deus nos vê é o modo como nós somos. Não é aviltar a nossa dignidade reconhecermos que não somos deuses. Bem pelo contrário. A nossa grandeza está em justamente aceitar e amar a nossa condição de criaturas d'Ele, elevadas à condição de Filhos. Por ora, nós não podemos ter a dimensão exata do que isto significa, por mais que tentemos. Mas é algo grandioso...

Ordenemos as nossas vidas, os nossos valores, os nossos conceitos com o Cristo e, desse modo, passaremos a viver de substância, e não mais da vã fumaça da nossa vaidade.

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* A frase franciscana completa a de Sto Agostinho porque, enquanto a de Agostinho se restringe estritamente ao início, a de S. Francisco faz referência a toda a vida, isto é, à condição da nossa total contingência e dependência de Deus que nunca cessa. Deus não apenas cria, mas sustenta na existência e tudo quanto existe, só existe por meio d'Ele. Esta existência diz respeito não somente a entes materiais, mas também a valores, como a bondade, a virtude, a honra, etc. Jesus o expressa ao dizer: "Só Deus é bom", isto é, não há bondade alternativa. S. Paulo, por sua vez, escreve: "n'Ele existimos, nos movemos e somos."

Caspian começa a ficar livre


"Dormir ao ar livre, beber apenas água, alimentar-se quase exclusivamente de nozes e frutos do mato foi uma experiência completamente nova para quem, como Caspian, estava habituado a deitar em lençóis de linho no quarto atapetado de um palácio, a ter as refeições servidas numa antecâmara, em baixelas de prata e ouro, com muitos criados prestimosos. Nunca Caspian fora tão feliz. Nunca o sono o deixara tão descansado, nem a comida lhe parecera tão saborosa: assim, começou a ficar maduro de espírito, e seu rosto adquiriu uma expressão régia.

C.S.Lewis, As Crônicas de Nárnia, Príncipe Caspian, Cap. 7.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cômica discussão filosófica sobre se vale mais uma bela jovem do que todo o clero do mundo


A discussão abaixo é tirada do livro "O Vigário de Wakefield" de Oliver Goldsmith, escrito em 1766, traduzida por Olavo de Carvalho da edição J. M. Dent & Sons de 1931, pp. 37-39.

1 Squire - membro da pequena aristocracia rural
2 Moses - jovem filho do vigário-narrador

- Mais vale uma bela jovem do que todo o clero do mundo.

- Prove.

- Antes de tudo, você quer abordar o assunto analogicamente ou dialogicamente?

- Acho que se deve abordá-lo racionalmente, respondeu Moses, feliz por lhe permitirem discutir.

- Muito bem, disse o Squire, primeiro as primeiras coisas. Espero que você não negue que tudo aquilo que é, é. Se você não concede isto logo de início, não posso prosseguir.

- Acho que posso concedê-lo, para meu proveito.

- Espero, retorquiu o outro, que você concorde também que uma parte é menor que o todo.

- Concedo isso também, disse Moses. - É uma coisa razoável.

- Espero, disse o Squire, que você não negue que três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos.

- Nada pode ser mais certo, respondeu o outro, e olhou em torno com seu habitual ar de importância.

- Muito bem, disse o Squire, falando muito rápido, - as premissas tendo sido assim colocadas, prossigo, fazendo observar que a concatenação das auto-existências, procedendo numa duplicada razão recíproca, naturalmente produz um dialogismo problemático, que em certa medida prova que a essência da espiritualidade pode ser referida ao segundo predicável.

- Pare! Pare!, gritou o outro. - Eu nego isso. Você pensa que posso me submeter assim docilmente a essas doutrinas heterodoxas?

- Que?, replicou o Squire, como tomado de paixão. - Não se submeter? Responda-me a uma questão direta: Você acha que Aristóteles tinha razão ao dizer que os relativos estão relacionados?

- Sem dúvida, replicou o outro.

- Se é assim, então responda-me diretamente: Você julga a investigação analítica da primeira parte do meu entimema deficiente secundum quoad ou quoad minus? E dê-me suas razões! Dê-me suas razões, digo, diretamente!

- Eu protesto!, gritou Moses! Não compreendo direito a força do seu raciocínio, mas, se ele for reduzido a uma proposição simples, poderei ter uma resposta.

- Oh, meu senhor!, respondeu o Squire. - Sou seu humilde servidor, mas o senhor pretende que eu lhe forneça também a argumentação e a inteligência. Não, senhor; isso, eu protesto, é demais pra mim.

Isto efetivamente despertou o riso contra o pobre Moses.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Rezai pela descoberta de vós próprios

Thomas Merton

Existe um ponto em que posso encontrar Deus, num contato real e experimental com a Sua infinita realidade: é aquele em que o meu ser contingente depende do Seu amor. Há em mim próprio, por assim dizer, um ponto culminante de existência em que sou mantido em vida pelo meu Criador.

Deus pronuncia-me como uma palavra que contém uma parcela do Seu pensamento. Uma palavra nunca é capaz de conceber a voz que a pronuncia. Mas se estou em conformidade com o conceito que Deus pronuncia em mim, se estou em conformidade com o pensamento d'Ele que era meu destino encarnar, estarei cheio da Sua realidade, encontrá-Lo-ei por toda a parte em mim próprio e não me encontrarei em qualquer outra parte. Estarei perdido n'Ele.

Quem, dentre vós, é capaz de reentrar em si próprio e aí encontrar o Deus que o pronuncia?

Se, como os místicos orientais, conseguirdes esvaziar o vosso espírito de qualquer pensamento e de qualquer desejo, podereis, na verdade, isolar-vos no centro de vós próprios e concentrar tudo o que existe em vós no ponto imaginário em que a vossa vida jorra de Deus, mas, no entanto, não encontrareis Deus. Nenhuma prática ou exercício natural pode levar-vos a um contato vital com Ele. A menos que Ele não se exprima em vós, que Ele não pronuncie o Seu próprio nome no centro da vossa alma, não O conhecereis melhor do que um seixo conhece o solo em que, na sua inércia, repousa.

A nossa descoberta de Deus é, dalgum modo, a descoberta que Deus faz de nós. Não podemos ir procurá-Lo ao céu, porque não temos qualquer meio de saber onde está o céu e o que é. Ele é que desce do céu e é Quem nos encontra. Olha-nos das profundezas da Sua infinita realidade, que está em toda a parte, e o fato de Ele nos ver confere-nos uma realidade superior, na qual também nós, por nossa vez, O descobrimos. Só O conhecemos na medida em que Ele nos conhece, e contemplá-Lo é participar na Sua contemplação d'Ele Próprio.

É no instante em que Deus se descobre em nós que nós nos tornamos contemplativos. Nesse momento, revela-se-nos o nosso ponto de contato com Ele, atravessamos o centro da nossa alma e entramos na eternidade.

É exato Deus conhecer-Se em todas as coisas que existem. Vê-las e é porque Ele as vê que elas existem. É porque ele as ama, que elas são boas. O amor que nelas põe é que faz a sua bondade intrínseca. O valor que Ele vê nelas é que faz o seu valor. É na medida em que Ele as vê e as ama que todas as coisas O refletem.

Mas, embora Deus esteja presente em todas as coisas pelo Seu conhecimento, o Seu amor, o Seu poder e o Seu interesse por elas, elas não têm d'Ele, necessariamente, consciência e conhecimento. Não é conhecido e amado senão por aquelas que generosamente admitiu a partilhar o Seu próprio conhecimento e o Seu próprio amor.

Para O conhecer e O amar tal como é, torna-se necessário que Deus habite em nós de uma nova e especial maneira. Assim Deus ajuda-nos, por missões sobrenaturais da Sua própria vida, a vencer as distâncias infinitas que O separam dos espíritos criados para O amar. O Pai, que habita no mais íntimo de todas as coisas e no mais íntimo de mim próprio, comunica-me o Seu Verbo e o Seu Espírito e, nessas missões, eu sou arrebatado para a Sua própria vida e conheço Deus no Seu próprio Amor.

A descoberta que faço da minha identidade começa nessas missões e nelas se completa, visto ser por elas que Ele Próprio, Deus, trazendo em Si Mesmo o segredo de quem eu sou, começa a viver em mim, não somente como meu Criador mas como um outro verdadeiro eu. Vivo, iam non ego, vivit vero in me Christus.

Essas missões começam no Batismo. Mas não assumem qualquer significação prática na vida das nossas faculdades até nos tornarmos capazes de atos de amor consciente. Daí por diante é que a presença particular de Deus em nós depende inteiramente das nossas próprias preferências. Daí por diante, a nossa vida torna-se uma série de opções entre a ficção do nosso falso eu, que alimentamos com as ilusões da paixão e dos apetites egoístas, e a nossa verdadeira identidade na paz de Deus.

Enquanto existo na terra, o meu espírito e a minha vontade permanecem mais ou menos impenetráveis às missões do Verbo de Deus e do Seu Espírito. Não recebo facilmente a Sua luz.

Cada manifestação dos meus apetites naturais, mesmo se a minha natureza é boa em si, tende, duma maneira ou doutra, a manter viva em mim a ilusão que contraria a realidade de Deus vivendo em mim. Os meus atos naturais, mesmo quando são bons, têm uma tendência quando apenas naturais, a concentrar as minhas faculdades sobre o homem que eu não sou, que não posso ser, o falso eu que há em mim, a personagem que Deus não conhece. É porque nasci no egoísmo. Nasci egocentrado, E é isto o pecado original.

Mesmo quando me esforço por agradar a Deus, tendo a agradar à minha própria ambição, Sua inimiga. Pode haver imperfeição mesmo no ardente amor duma grande perfeição, mesmo no desejo da virtude e da santidade. O próprio desejo da contemplação  pode ser impuro, quando esquecemos que a verdadeira contemplação significa a destruição completa de todo o egoísmo e a mais pura pobreza e limpidez de coração.

Embora Deus viva nas almas de homens que não têm consciência d'Ele, como posso dizer que O encontrei e me encontrei n'Ele, se não O conhecer nunca, se jamais pensar n'Ele, se não me interessar por Ele, não O procurar ou não desejar a Sua presença na minha alma? Para que serve dirigir-lhe algumas orações simplesmente formais, voltar-me depois para o outro lado, e dar todo o meu espírito e toda a minha vontade às criaturas, só me preocupando com objetivos muito afastados d'Ele? Mesmo quando a minha alma pudesse estar isenta de culpa, se o meu espírito não pertence a Deus, então também eu não Lhe pertenço. Se os meus desejos, em lugar de caminharem até Ele, se dispersam na Sua Criação, é porque reduzi a Sua vida em mim ao nível de uma formalidade, não permitindo que sobre mim exerça uma ação verdadeiramente vital.

Desculpai a minha alma, ó meu Deus, mas enchei também a minha vontade com o fogo das vossas fontes. Resplandecei no meu espírito, se bem que, talvez, isto signifique "sede trevas para a minha experiência", mas enchei o meu coração da Vossa Vida prodigiosa. Que os meus olhos só vejam no mundo a Vossa glória e que as minhas mãos não toquem nada que não seja para Vosso serviço. Que a minha língua só conheça o sabor do pão que me fortifique para Vos glorificar. Cantando os Vossos hinos, ouvirei a Vossa voz e todas as harmonias que Vós criastes. A lã da ovelha e o algodão dos campos dar-me-ão calor suficiente para que possa viver ao Vosso serviço; darei o resto aos Vossos pobres. Que me utilize de todas as coisas pelo único motivo de encontrar a minha alegria em glorificar-Vos magnificamente.

Antes de tudo, portanto, preservai-me do pecado. Livrai-me da morte do pecado mortal que põe o inferno na minha alma. Preservai-me do crime da concupiscência, que cega e envenena o meu coração. Preservai-me dos pecados que vão consumindo a carne do homem com um fogo irresistível, até o devorarem. Preservai-me do amor do dinheiro, que contém o ódio, da avareza e da ambição, que asfixiam a minha vida. Livrai-me das inúteis tarefas da vaidade, e do labor estéril em que os artistas se gastam a si próprios por orgulho, dinheiro e fama, e em que os homens piedosos são esmagados sob a avalanche de seu próprio e importuno zelo. Tratai, em mim, a fétida chaga da cobiça e os apetites que sangram a minha natureza até ao esgotamento. Esmagai a serpente da inveja que inflige ao amor a sua venenosa mordedura e que mata toda a alegria.

Soltai as minhas mãos e libertai o meu coração da sua indolência. Libertai-me da preguiça que se agita mascarada de atividade, quando não é atividade que se me pede, e da covardia que realiza o que não se exige com o fim de evitar um sacrifício.

Dai-me, porém, a força que se aplica a servir-Vos em paz e em silêncio. Dai-me a humildade em que reside a única possibilidade de repouso, e livrai-me do orgulho, que é o mais pesado dos fardos. Penetrai todo o meu coração, toda a minha alma, da simplicidade do amor. Enchei toda a minha vida só com o pensamento e com o desejo do amor; que me seja permitido amar não por amor do mérito, não por amor da perfeição, não por amor da virtude, não por amor da santidade, mas só por Deus.

Porque há uma só coisa que pode satisfazer o amor e recompensá-lo: Deus somente.

Eis, portanto, o que significa procurar Deus perfeitamente: desviar-me da ilusão e do prazer, das inquietações e dos desejos deste mundo, das obras de que Deus não necessita, de uma glória que mais não é do que humana vanglória; conservar o meu espírito liberto de qualquer perturbação, a fim de que a minha liberdade esteja sempre à disposição da Sua vontade; manter silêncio no meu coração e escutar a voz de Deus; cultivar a liberdade intelectual de afastar da minha inteligência, conceitos e imagens das criaturas, a fim de, na fé, sentir o contato secreto de Deus; amar todos os homens como a mim mesmo; repousar na humildade e encontrar a paz afastando-me das lutas e das rivalidades; manter-me à distância das discussões e livrar-me do pesado fardo dos juízos, da censura e da crítica, e de toda a carga de opiniões que não tenho qualquer obrigação de transportar; ter uma vontade que esteja sempre pronta a dobrar-se sobre si própria e a concentrar no mais profundo de si todas as forças da alma, para aguardar em silenciosa expectativa a vinda de Deus, permanecendo em suspenso, numa concentração tranquila e sem esforço, sob o pensamento de que dependo d'Ele em tudo; reunir tudo o que tenho e tudo o que sou capaz de suportar, de fazer ou de ser, e dar tudo isso a Deus, na submissão de um amor perfeito, de uma fé cega, de uma confiança sincera, para cumprir a Sua vontade.

E, depois, esperar, na paz, o abandono e o olvido de todas as coisas.

Thomas Merton, Sementes de Contemplação

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

As coisas na sua identidade


Thomas Merton

Uma árvore glorifica a Deus, em primeiro lugar, por ser uma árvore. Porque, sendo o que Deus entende que seja, espelha uma idéia que está em Deus e não é distinta da essência de Deus; portanto, uma árvore, sendo árvore, é, dalgum modo, uma cópia de Deus.

Quanto mais uma árvore se assemelha a si própria, tanto mais se assemelha a Deus. Se tentasse parecer-se com qualquer outra coisa que nunca fosse destinada a ser, parecer-se-ia menos com Deus e, por consequência, glorificá-Lo-ia menos.

Não há dois seres criados exatamente semelhantes. E a sua individualidade não é imperfeição. Pelo contrário: a perfeição de cada coisa criada não reside simplesmente na sua conformidade com um tipo abstrato, mas na sua identidade individual consigo mesma. Determinada árvore glorificará Deus prolongando as suas raízes na terra e erguendo os seus ramos no ar e na luz de uma maneira como nem antes nem depois dela, nenhuma outra árvore jamais o fez nem fará.

Imaginais que, consideradas individualmente, todas as criaturas do mundo são tentativas imperfeitas de reproduzir um tipo ideal que o Criador jamais conseguiu realizar na terra? Se assim é, elas não O glorificariam e antes proclamariam que Ele não é um Criador perfeito.

Eis a razão por que cada ser em particular, na sua individualidade, natureza concreta e entidade, com todas as suas características, qualidades que lhe são próprias e inviolável identidade, glorifica a Deus sendo precisamente o que Ele quer que seja, em determinado lugar e momento, nas circunstâncias que o Seu Amor e Sua infinita Arte lhe prescrevem.

As formas e os caracteres individuais das coisas que vivem e crescem, das coisas inanimadas, dos animais, das flores, de toda a natureza, constituem a sua santidade aos olhos de Deus. É sendo o que são que elas são santas. A tosca e típica beleza deste poldro, neste dia de Abril, neste prado, sob estas nuvens, é uma coisa santa e consagrada a Deus pela Sua Arte e proclama a glória de Deus.

As flores brancas de certa variedade de abrunheiro que se avistam desta janela, são santas. As florinhas amarelas que ninguém nota à beira do caminho são santas que olham Deus face a face.

Esta folha possui a sua particular contextura e a sua individual rede de nervuras e a sua própria forma santa; a perca e a truta, ocultas nos profundos recantos do rio, são canonizadas pela sua beleza e pela sua força.

A grande montanha, seminua, escavada pelas enxurradas, é mais um santo de Deus. Não existe outra como ela. É única dentro das suas características; nenhuma outra coisa, neste mundo, refletiu ou refletirá jamais Deus absolutamente da mesma maneira. E nisto consiste a sua santidade.

Mas vós? E eu?

Diferentemente dos animais e das árvores, não basta que sejamos conformes à nossa natureza. Não basta ser individualmente homens. Para nós, a santidade é mais do que natureza humana. Se nunca formos nada mais do que homens, nada mais do que o eu trazido pelo nascimento, não seremos santos e estaremos impossibilitados de prestar a Deus o culto de o imitarmos, que seria santidade.

Pode na verdade dizer-se que, para mim, a santidade consiste em ser eu próprio, que, para vós, a santidade consiste em serdes vós próprios, e que, em última análise, a vossa santidade nunca será a minha e a minha nunca será a vossa, exceto no que respeita à partilha comum de caridade e de graça.

Para mim, santificar-se significa ser eu próprio. O problema da santidade e da salvação consiste, portanto, e na realidade, no problema de encontrar o que sou e em descobrir o meu próprio eu.

As árvores e os animais não têm problema a resolver. Deus fá-los o que são sem os consultar e eles ficam perfeitamente satisfeitos. Conosco, é diferente. Deus deixa-nos a liberdade de ser o que quisermos. Podemos ser nós próprios ou não o ser, segundo a nossa vontade. Mas o problema é este: uma vez que só Deus possui o segredo da minha identidade, só Ele pode fazer-me o que eu sou, ou antes, só Ele pode fazer-me o que eu serei, quando, por fim, eu começar verdadeiramente a ser.

As sementes que, a todo o momento, são lançadas na minha liberdade pela vontade de Deus, são gérmens da minha identidade, da minha felicidade, da minha santidade.

Recusá-las é recusar tudo: é a recusa da minha existência e do meu ser, da minha identidade e do meu eu bem individual. Não aceitar nem amar nem realizar a vontade de Deus, é recusar a plena realização da minha própria existência.

E se não me tornar nunca aquilo que estou destinado a ser e antes ficar sempre o que não sou, passarei a eternidade a contradizer-me, por ser, ao mesmo tempo, alguma coisa e nada, uma vida que quer viver e que está morta e uma morte que quer estar morta e não pode realizar completamente a sua própria morte, porque é, não obstante, obrigada a existir.

Dizer que nasci no pecado é dizer que vim ao mundo com um falso eu. Entrei na existência sob o signo da contradição, sendo alguém que nunca tive a intenção de ser, e, por essa razão, sendo a negação do que se pode admitir que eu seja. Assim, entrei, ao mesmo tempo, na existência e na não-existência, porque, desde o começo, fui qualquer coisa que não era.

Exprima-se a mesma coisa sob uma forma menos paradoxal: durante todo o tempo em que não sou nada mais do que aquilo que nasceu de minha mãe, estou tão longe de ser a pessoa que deveria ser, que poderia mesmo não existir por completo. Na realidade, valeria mesmo mais, para mim, não ter nascido.

Cada um de nós está dissimulado por uma personalidade ilusória: um falso eu.

Este é o homem que eu próprio desejo ser, mas que não pode existir, porque Deus nada sabe dele. E ser ignorado de Deus é, reconheçamo-lo, demasiado isolamento.

A minha falsa personalidade é a que quer existir fora da irradiação da vontade e do amor de Deus - fora da realidade e fora da vida. E um tal eu tem de ser, por força, uma ilusão.

Não somos muito aptos para reconhecer as ilusões, - menos que qualquer outra, as que temos sobre nós próprios, - menos que qualquer outra, as que temos sobre nós próprios, - aquelas com que nascemos e que alimentam as raízes do pecado.  Para muitas pessoas, neste mundo, não há maior realidade subjetiva do que esse falso eu que é o seu e que não pode existir. Uma vida dedicada ao culto de tal sombra é o que se chama uma vida de pecado.

Todo o pecado tem como ponto de partida essa convicção de que o meu falso eu, o eu que existe somente nos meus desejos egocentristas, é a realidade fundamental de vida, à qual se subordina tudo mais que existe no universo. Assim, gasto a minha vida esforçando-me por acumular prazeres, experiências, poder, honra, ciência, amor, a disfarçar, revestindo-o, esse falso eu e a alicerçar o seu nada dentro duma realidade objetiva. E enrolo em volta de mim as minhas experiências, envolvo-me em prazeres e glória como em pequenas ligaduras, com o objetivo de me tornar perceptível a mim próprio e ao mundo, como se fosse um corpo invisível que só pode tornar-se visível se algo de visível cobrir a sua superfície.

Mas sob as coisas que acumulei em volta de mim, não há substância. Há só vazio, e o meu edifício de prazeres e de ambições sobre nada assenta. São eles que me objetivam, mas todos, pela sua própria contingência, estão destinados à destruição. E, quando desaparecerem, de mim nada mais restará a não ser a minha nudez, a minha vacuidade, o meu nada, para me revelarem que sou um erro.

O segredo da minha identidade está oculto no amor e na misericórdia de Deus. Mas tudo que está em Deus é realmente idêntico a Ele, porque a sua infinita simplicidade não admite nem divisão nem distinção. Não posso, portanto, esperar encontrar-me a mim próprio em parte alguma a não ser só n'Ele. Numa palavra: a única maneira como posso ser eu próprio é identificar-me a Ele, em Quem estão ocultas a razão e a completa realização da minha existência.

Há apenas, por conseguinte, uma único problema de que dependem inteiramente a minha existência, a minha paz e a minha felicidade: descobrir-me a mim próprio, descobrindo Deus. Se O encontrar, encontrar-me-ei a mim próprio, e, se encontrar o meu verdadeiro eu, encontrá-Lo-ei.

Mas, embora isto pareça muito simples, é, na verdade, imensamente difícil. De fato, se eu estiver abandonado, entregue a mim próprio, será mesmo completamente impossível, porque, embora, com o auxílio da minha própria razão, eu possa conhecer um pouco da existência e da natureza de Deus, não existe qualquer meio humano e racional para chegar a esse contato, a essa posse d'Ele, que será a descoberta de Quem Ele é realmente e de quem eu sou n'Ele. É algo que nenhum homem pode, sozinho, fazer. E nem todos os homens nem todas as coisas criadas que existem no universo, podem ajudá-lo em tal tarefa. Quem pode ensinar-me a encontrar Deus, é Deus, Ele Próprio, só Ele, unicamente Ele.

Thomas Merton, Sementes de Contemplação

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Naturalmente, este texto diz muita coisa e precisa ser meditado. Somente uma leitura detida será suficiente para lhe apreender todo o sentido. Espero que seja útil. Pax.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Olhar do divino Infante



"Ó Jesus, preciso de que me anime, 
o sorriso dos Vossos lábios; a Vossa confiança será a minha força, 
o Vosso contentamento será a minha alegria. 
Nada custa quando se é amado e quando se ama... 
Dizei-mo por meio dum desses olhares que tão fundo penetram na alma. 
Ó minha alma prolonga a tua contemplação... 
O olhar do divino Infante será sempre muito vago 
para aqueles que O fitam apenas de passagem..." 

(Cônego Beaudenom)

Dialética Erística - Estratagema 33: Negação da teoria na prática


"Isso pode ser verdade em teoria; mas na prática é falso." Com este sofisma, aceitam-se os fundamentos mas negam-se as conseqüências; em contradição com a regra: a ratione ad rationatum valet consequentia ("da premissa à consequência a conclusão é obrigatória") 

Essa afirmação expressa algo que é impossível: o que é certo na teoria tem de sê-lo na prática. E, se não o é, há uma falha na teoria: algo foi ignorado e não foi avaliado; por conseguinte, é falso também na teoria.

Arthur Schopenhauer, Como Vencer Um Debate Sem Precisar Ter Razão

sábado, 24 de dezembro de 2011

Como um violão sem bateria


Como um violão bonito sem bateria numa apresentação para muitas pessoas. 
Assim é uma pessoa bem aparentada exteriormente, mas sem a Graça.

Não se ouve a música.

A vida sem a Graça é, além disso, como a fogueira de papel celofane da igreja universal: 
nem ilumina nem dá calor.

Essa dupla propriedade é dada pela Graça, qual chama real: 
luz para o intelecto; calor para a vontade.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Desprendendo-se dos pesos inúteis da opinião dos outros


Sta Teresa D'Avila dizia que, se nós somos Imagem e Semelhança de Deus, e Deus é um mistério, nós por certo somos também um mistério. 

O Olavo de Carvalho, um filósofo brasileiro, escreve que nós, não obstante sejamos almas imortais, costumamos reduzir a nossa vida à mera dimensão material. Critica ele que a maioria de nós somente assumirá a condição de alma imortal após a morte, quando, ao contrário, poderíamos fazê-lo desde agora.

Tudo isto nos mostra algo da grandeza da nossa condição. O Cristianismo afirmará que o valor de uma alma humana transcende o de toda a matéria criada. De fato, somos algo de imenso. Ser, afinal, imagem e semelhança de Deus, para quem quer que reflita um pouco nisso, não poderia mesmo ser qualquer coisa.

Acontece que, geralmente, nós deixamos fazer parte da nossa vida uma infinidade de coisas que aviltam essa nossa condição. É interessante saber que uma das penas do inferno, o tormento pelo fogo, é um estado de humilhação permanente onde um ser espiritual está continuamente subjugado por outro de ordem inferior, o fogo material. O inferno é uma punição contra a soberba humana que, em vida, quis tornar-se deus sem Deus.

Uma das formas de decrescermos a nossa condição é quando entramos e obedecemos ao jogo das aparências e das suposições do nosso círculo de convívio. Para alguns, basta parecer bom, e não sê-lo de fato. Pensam ser suficiente que o outro presuma da nossa virtude, ainda que não a tenhamos na verdade. 

Já dizia S. Gregório de Nissa que todo este joguete não passa de ilusão e de besteira que só existe na cabeça do homem, carecendo de substância. Também S. Francisco de Assis foi, certa vez, visitado por um anjo que lhe perguntava: "O que valem os sonhos humanos? São mais frágeis que fumaça."

Se considerarmos isso com seriedade, haveremos de contemplar a grande imbecilidade que grassa no mundo; a enormidade da futilidade que ocupa os corações dos homens. O Gustavo Corção não deixava de corar ao perceber que a grande complexidade, por exemplo, da construção telefônica, para a qual ele contribuíra, terminara por servir à mais baixa tolice humana. Tantas despesas e tanto estudo terminariam por se converter em uma conversa sobre cavalos, quando muito.

Eis a que o homem se reduziu. Esqueceu-se da sua nobre condição e deu-se às lavagens da futilidade.

Estas suposições dos outros a nosso respeito, de que eu falava, podem ser, algumas vezes, percebidas. Se um sujeito nota a expectativa que um outro tem de si, e se for uma expectativa boa, ele sentirá a tentação de realizá-la. Lhe desagrada a idéia de que pode frustrar o outro naquilo que ele concebeu de nobre. Acontece, porém, que esta expectativa do outro enquadra o sujeito, reduzindo a sua infinidade de possibilidades a um padrão reduzido de atitudes.

Consideremos, então, o fato de que vivemos numa sociedade, isto é, temos relações com várias pessoas. É óbvio que obedecer as expectativas de todos é uma impossibilidade visto que não as conheceremos perfeitamente e muitas delas serão absolutamente contraditórias. Talvez elejamos algumas atitudes a partir das pessoas que as sustentam. Ainda assim, mesmo abstraindo a condição de não autenticidade que isto nos levaria a ter, este processo seria algo extremamente cansativo.

Vê-se logo que é uma empresa tola. Mas ainda que assim seja, há muita gente que vive desse modo.

Como já o dissemos, essa atitude exige da pessoa uma infidelidade a si mesma. A verdade sai-lhe do campo de visão e, em seu lugar, é colocada a estima do outro. Não mais os valores objetivos é que norteiam o indivíduo, mas tão somente o respeito humano. Este é um dos disfarces mais clássicos do amor próprio. É esta a falsa paz dos covardes e dos que se alheiam de si mesmos. É neste contexto que Jesus afirmou ter vindo trazer, não a paz, mas a espada.

A autêntica conversão exige da pessoa que se desfaça disso. Embora ela relute, este esvaziamento é uma libertação. Surge um sentimento de leveza e de paz quando percebemos que não há qualquer necessidade ou razão de levarmos estes pesos inúteis. O ego reclamará, pois o que deseja é ser admirado e fazer dos outros, fãs. Mas esta vil satisfação assemelha-se à lavagem com que o filho pródigo procurava matar a fome. É uma traição à nossa própria condição e é algo que termina por angustiar, pois a nossa alma está estruturada para encontrar sua satisfação com a Verdade e com a doação de si mesma.

O que deve nortear os nossos atos não é o constrangimento ou a admiração que eles nos causarão em face dos outros, mas tão somente a sua relação com a verdade, a beleza e o bem objetivos.

Este esvaziamento radical exige maturidade que, por sua vez, requer profundidade no conhecimento de si mesmo. Este abrir mão dos entulhos marca o início do retorno à nossa condição de seres imortais e semelhantes a Deus. Seres livres.

Jesus falou que a Verdade é que nos libertará. Logo, é a mentira o que nos prende. Abandonemos estes grilhões inúteis. Se o fizermos, assumiremos naturalmente uma atitude religiosa diante da vida.

"Quando abandonamos a Deus, passamos a incensar um falso absoluto", escrevia o Fulton Sheen.

"Fora de Deus, tudo é estreiteza", dizia S. João da Cruz.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Natal - Dia do Fogo


"Os judeus celebravam uma festa chamada Dia do Fogo em memória do fogo com que Neemias consumou a vítima oferecida a Deus, quando ele voltou com seus compatriotas do cativeiro da Babilônia. A festa do Natal deveria também, e com muito mais razão, chamar-se Dia do Fogo, porque nesse dia um Deus veio ao mundo sob a forma duma criancinha para atear o fogo do amor no coração dos homens."

Sto. Afonso de Ligório

Natal - poema de P. Gonçalo Portocarrero de Almada



Há dois mil anos, nos arredores de Belém,
veio ao mundo o Deus encarnado, Jesus,
tão só na companhia de São José e sua Mãe
ao mundo das trevas veio Deus, a Luz da Luz.

É Cristo, o Rei dos Reis e Imperador
como Senhor Deus que é omnipotente
e apesar de ser do mundo grande Senhor
nasce pobre, desvalido e indigente.

Não há p’ra Ele lugar na fraca pousada
e não há outra casa para o albergar
Ele, que todas as coisas tirou do nada,
E que veio ao mundo para todos salvar!

Na fria solidão daquela amargura
apenas um estábulo encontrou José
onde só velhas tábuas e palha dura
servem de mísero berço ao Autor da fé.

No doce coração puríssimo de Maria
uma chama de amor vivo resplandece,
luz que brilha e faz da noite claro dia,
fogo que arde ao som de humilde prece:

- Meu divino Filho, meu Jesus, meu amor,
que agora vejo em provação tão atroz
confesso-Vos contudo meu Deus e Senhor
e peço-Vos que tenhais piedade de nós!

Perdoai, Senhor nosso, esta manjedoura,
o estábulo que vos serve de morada
e também a pobreza tão confrangedora
qual é a desta vossa humilde criada!

Nas palhinhas deitado, o Menino sorriu
e assim disse à Virgem Imaculada:
- Bendita aquela que a voz de Deus ouviu
e, sendo alta Rainha, se fez escrava!

Quanta riqueza, Senhora, não vale nada
se comparada com a pobreza de quem tem,
em noite escura, numa gruta gelada,
o tesouro do doce sorriso de sua Mãe!

Fonte: Logos

Olhai os Lírios; Vede os Pássaros


"Todos conhecem a parábola dos pássaros do céu e dos lírios do campo. Mas quando encontram uma pessoa que não tem herança, nem pensão e nem seguro e, mesmo assim, vive tranquilo quanto ao seu futuro, aí meneiam a cabeça como se fosse algo incomum".

Sta Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein), O Mistério do Natal

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Grandeza - Prof. Orlando Fedeli

Matando um pouco a saudade, eis aí uma poesia deste grande homem que, com bravura singular, defendeu a Sacrossanta Fé Católica e fez da sua vida um contínuo apontar às alturas. Que Deus o tenha em Sua glória.

Dialética Erística - Estratagema do Pré-Silogismo


Se queremos chegar a uma certa conclusão, devemos evitar que esta seja prevista, e atuar de modo que o adversário, sem percebê-lo, admita as premissas uma de cada vez e dispersas sem ordem na conversação; do contrário ele buscará toda sorte de argúcias; ou, quando temos dúvida de que o adversário as admitirá, apresentaremos as premissas dessas premissas, fazendo pré-silogismos, procurando fazer com que admita as premissas de muitos desses pré-silogismos, sem ordem e confusamente, ocultando assim nosso jogo, até que tenhamos reunido tudo aquilo de que precisamos. Chega-se, portanto, à questão seguindo um longo caminho. Estas regras são apresentadas por Aristóteles nos Tópicos, Livro III, Cap. I.

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Esta técnica, das mais requintadas e complexas, pode ser usada não só no debate face a face, mas em todo processo de manipulação da opinião pública. Aceitando premissas parciais espalhadas aqui e ali pela propaganda, pelos espetáculos de teatro, por indivíduos famosos, aparentemente desconectadas entre si e sem qualquer intenção unitária subjacente, o público é levado, sem perceber, à conclusão desejada pelo manipulador. Se a conclusão não for declarada explicitamente em parte alguma, ela terá ainda mais força persuasiva, porque a vítima, ao tirá-la, acreditará estar raciocinando livremente e assumirá responsabilidade pela crença que lhe foi incutida, passando mesmo a defendê-la como expressão pura de sua opinião espontânea. Este processo é usado sistematicamente pela "revolução cultural" gramsciana, que descrevo em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra E Antonio Gramsci, 2ª ed., Rio, IAL/Stella Cayimmi, 1994, pp. 65-109. A maioria das técnicas de manipulação da opinião em uso hoje em dia se constitui de adaptações e formidáveis ampliações de técnicas retórico-dialéticas. V. tb. Olivier Reboul, A Doutrinação, trad. rev. Heitor Ferreira da Costa, São Paulo, Nacional, 1980, e ainda Flo Conway and Jim Siegelman, Snapping - America's Epidemic of Sudden Personality Changes, New Yoor, Delta Book, 1979.


Arthur Schopenhauer em Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão. 
Nota de Olavo de Carvalho.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Aos devotos de São Francisco de Assis


Francisco de Assis: Alma Simples entre todas


Depois de Jesus e de Maria, entre os inúmeros santos que a Igreja venera, haverá algum que tenha elevado o mais alto grau a simplicidade, e que seja modelo mais belo, do que Francisco, chamado o "pobre de Assis"?

A pobreza foi sua virtude preferida. Tomou-a por sua dama, sua esposa. Exaltou-a acima de tudo. Mas não será a pobreza fruto, ou melhor, o fruto especial, e como que a filha da simplicidade?

É porque a alma simples contempla a Deus, fixa e constantemente; que se esquece e se desapega de tudo mais, exclamando como São Paulo: "Olho todas as coisas como lixo, a fim de poder ganhar o Cristo."

A virtude da pobreza não poderia existir sem a simplicidade. É a simplicidade que torna possível a virtude da pobreza, gerando-a da mesma maneira que a mãe dá vida à filha.

Por isso, Francisco de Assis foi simples entre todos os simples.

A juventude, a vocação, a vida, as obras admiráveis, os últimos anos, a morte, tudo nele é simplicidade, pois nunca outro pensamento lhe ocupou o espírito, nem outro desejo o coração, que o de assemelhar-se perfeitamente a Jesus Cristo.

Como o do Salvador, seu berço é um estábulo. Assim o quer Deus, para marcar o caráter que terá toda sua vida.

Os companheiros de mocidade são unânimes em louvar-lhe a franqueza, a honestidade, a alegria, a candura da alma, em suma, a simplicidade. Essa simplicidade afasta dele a inveja, o ciúme e qualquer desconfiança; atrai-lhe a simpatia sem que a procure, faz com que seja amado de todos; e sempre que há uma festa proclamam-no rei.

É a simplicidade que o arranca ao mundo e o lança no caminho da mais alta perfeição.

Saía de um festim. Os companheiros, alegres, caminhavam cantando. De repente pára, imóvel, o olhar no céu, o rosto iluminado, em êxtase. Que vê ele? O tudo de Deus e o nada da criatura.

Está acabado: bastou-lhe o olhar de um instante. O que viu jamais esquecerá. Sua deliberação está tomada: pertence todo a Deus.

Mas como realizará essa decisão?

Abre o Evangelho e lê: "Se alguém quer ser perfeito, despoje-se de tudo o que tem e siga-me." (S.Mat. XIX,21).

Não raciocina, não discute, não atenua a palavra de Deus. Jesus diz-lhe que se despoje de tudo para segui-lO: executa a ordem ao pé da letra, e, afrontando o respeito humano, a oposição dos homens e do próprio pai, expondo-se ao ridículo, à injúria e à miséria, realmente despoja-se de tudo, até, do manto; como vestimenta, conserva apenas uma túnica e um cordão, como livro, uma cruz. Jamais alguém levara tão longe a simplicidade. Bastou-lhe uma palavra do Evangelho para chegar a esse extremo, a essa loucura, como julga o mundo.

Desde então, Francisco nunca mais retrocedeu.

Num prodígio de abandono à Providência, não conhecido nos séculos passados, funda uma ordem religiosa baseada na renúncia universal e perpétua a tudo o que não é indispensável à vida, e, para sempre proíbe aos seus que possuam qualquer bem deste mundo. Chega até a demolir com as próprias mãos um convento que havia sido construído em desacordo com suas instruções.

É simples para com os superiores. Pede ao Sumo Pontífice para confirmar a indulgência da Porciúncula, que lhe fora concedida por revelação; e, quando o Papa a confirma, retira-se. O Papa é obrigado a chamá-lo para dar-lhe um atestado escrito do insigne privilégio que acaba de obter.

É simples com os irmãos; considera-se o último dentre eles. Quer que seus discípulos se chamem mínimos, isto é, os menores.

É simples com todas as criaturas. Como o primeiro Adão, em estado de inocência, fala aos pássaros, aos peixes, aos animais; exorta toda a natureza a louvar a Deus. Quanto a ele, vê Deus em todas as obras.

A alma de Francisco é, na verdade, uma alma de criança, alma límpida e transparente, que ignora o mal e tem horror a toda duplicidade; alma de pomba, em que se reflete com toda a perfeição a simplicidade do Evangelho.

Segui-o em todas as suas jornadas, através de seus múltiplos projetos, entre os religiosos de sua ordem. Não se apega a coisa alguma de humano ou de criado; tudo desdenha. Só vê, procurar e quer a Deus, Deus meus et omnia: "Meu Deus, sois o meu tudo”: esta é sua divisa e a essência de seu espírito. Tudo, para ele, nada significa; somente Deus é seu tudo e é único!

Jesus pobre, Jesus despojado de tudo, Jesus na cruz, no auge da miséria e do abandono, eis o constante objetivo de Francisco, sua única paixão! É sempre encontrado aos pés do Crucifixo, entre os braços e sobre o coração do Salvador. Só aspira a ser pobre e crucificado como Ele, a imolar-se como Ele, pela glória de Deus e salvação das almas; e, por insigne graça, merece receber em seu corpo e em seus membros as mesmas chagas que o Redentor do mundo.

Depois desse extraordinário milagre, realizado em sua carne e visível aos olhos de todos, Francisco, mais do que nunca, torna-se motivo de entusiasmo para o povo, que, de toda parte, ocorre para ele, apressa-se, quer vê-lo, tocá-lo, beijar-lhe os estigmas sangrentos.

E tão grande é sua simplicidade, seu esquecimento total de si, sua atenção dirigida só a Deus, que não procura fugir nem esquivar-se a tais homenagens.

Alma menos simples teria tido medo de si; teria receado o amor próprio e a vã complacênciaMas Francisco está de tal forma morto para o seu eu, que o homem não existe mais nele; cedeu todo o lugar a Deus. Francisco não mais se vê; só vê a Deus que deseja glorificar-Se em Sua criatura.

E exclamar "Meus olhos não vêem mais a criatura; toda minha alma clama pelo Criador; no céu e na terra, nada há que me seja doce; tudo se dissipa perante o amor do Cristo!”(3.º Cântico)

Quando alcança o mais alto cimo da simplicidade, só lhe resta deixar o mundo para entrar no céu.

Com efeito, Deus o chama para coroá-lo. Aproximam-se os últimos instantes. Para aliviá-lo, os irmãos tentam mudar-lhe a posição no miserável grabato(leito pequeno e pobre): ele recusa, quer permanecer de costas, para melhor contemplar o céu. E mais: acha que o grabato ainda é demasiado. Exige que o depositem no chão, para nada mais conservar dos bens deste mundo. Depois desse último ato de simplicidade, feliz por se parecer mais com Jesus crucificado, o corpo meio levantado e o rosto resplandecente de amor, entrega a alma a Deus; vai unir-se, por toda a eternidade, Àquele a quem unicamente procurou e amou na terra.

Igual simplicidade ultrapassa as forças normais. Somente Deus, por meio de graças extraordinárias, pode assim elevar uma alma escolhida. Que, ao menos, seja ela como um farol luminoso que vos conduza entre os escolhos e as tempestades deste mundo! Nessa esplêndida luz, compreendei melhor as palavras da Imitação: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, exceto amar a Deus e só a Ele servir!

Compreendei melhor quão necessária e grande é a simplicidade que, através dos bens passageiros e através de todas as criaturas, somente ao Criador vê e procura.

Que cada uma de vós seja simples, de acordo com o próprio estado e condição e em razão da graça que Deus lhe concedeu! Que cada uma se esforce por alcançar o grau de simplicidade determinado por Deus! A vossa simplicidade marcará a medida em que pertencereis a Deus na terra e em que gozareis de Deus no céu.

Quanto mais largas e poderosas forem vossas asas de pombas, mais crescereis em graça neste mundo e em glória no outro!

(A Simplicidade segundo O Evangelho pelo Monsenhor de Gibergues, 1945)

Fonte e Grifos: A Grande Guerra

Outra música linda

Aaaaahhhh, definitivamente, minha sensibilidade é oriental... Shon Shuei Shun!

Uma bela música

Tive um trabalhão pra encontrar essa música, mas, enfim, achei! Aí está! 
Enjoy with me!

Olhos ao alto e saber prático


Se alguém tem os olhos embebidos de céu é natural que, ao baixá-los, ande um pouco ofuscado, como alguém que, fitando o sol, entra, de repente, numa sala escura. Talvez este seja o motivo pelo qual alguns contemplativos se revelam tão pouco eficientes em questões práticas.

Jesus diz algo que, em certo sentido, pode ser visto neste contexto: 

"Os filhos deste mundo são mais espertos nos seus negócios do que os filhos da luz". Eu penso que este tipo de "esperteza", porém, de nenhum modo é desejável.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Encontro de Shasta e Aslam


A estrada no caso seguia entre as matas mais espessas, sempre mais frias. Ventos gelados continuavam a impelir blocos de névoa sobre Shasta sem parar. Não estando acostumado aos lugares montanhosos, ignorava que estava a uma grande altitude, talvez já no alto da picada.

"Devo ser o cara mais desgraçado de todo o mundo", pensou. "Tudo dá certo com os outros, comigo nunca. Os nobres e as damas de Nárnia conseguiram fugir de Tashbaan; eu fiquei lá. Aravis, Bri e Huin estão no bem-bom com o velho eremita; fui o único a ter de sair. O rei Luna e sua gente estão a salvo no castelo, com os protões bem fechados, mas eu fiquei de fora."

Teve tanta pena de si mesmo que as lágrimas começaram a deslizar por seu rosto.

Um susto interrompeu os seus tristes pensamentos. Alguém ou alguma coisa caminhava a seu lado. Nas trevas não podia ver nada. E a coisa (ou pessoa) ia tão silenciosamente que ele mal podia ouvir suas pisadas. Ouvia, sim, uma respiração: o invisível companheiro de fato respirava com vontade; devia ser uma criatura enorme. Foi um grande choque.

Relampejou na sua cabeça uma lembrança: ouvira dizer que existiam gigantes nos países do Norte. Mordeu os lábios, apavorado. Mas, agora que tinha um motivo real para chorar, parou de chorar.

A coisa (se é que não era uma pessoa) ia tão silenciosa que talvez fosse mera imaginação. Já estava certo disso, quando ouviu ao seu lado um suspiro grande e profundo. Não era imaginação! O fato é que sentiu o hálito quente desse longo suspiro na mão direita.

Se o cavalo fosse mesmo bom - ou se ele soubesse como fazer o cavalo tornar-se bom - teria arriscado tudo numa corrida desabalada. Como isso não era possível, seguiu a passo, com o companheiro invisível caminhando e respirando a seu lado. Acabou não aguentando mais:

- Quem é você? - murmurou baixinho.

- Alguém que esperava por sua voz - respondeu a coisa. O tom não era alto, mas amplo e profundo.

- Você é... um gigante?

- Pode me chamar de gigante - disse a grande voz. - Mas não me pareço com as criaturas que você chama de gigantes.

- Não consigo vê-lo - falou Shasta, depois de muito tentar. Uma coisa terrível lhe passou pela cabeça. Com a voz quase trêmula de choro, perguntou:

- Você não é... não é uma coisa morta... é? Vá embora, por favor. Nunca lhe fiz mal. Ó, sou o sujeito mais desgraçado do mundo!

Sentiu novamente o hálito quente da coisa no rosto e na mão.

- Morto não respira assim. Pode me contar as suas tristezas, rapaz.

O hálito deu a Shasta um pouco mais de confiança. Contou então que jamais conhecera pai e mãe, que fora criado por um pescador muito severo. Contou sobre como fugira, sobre os leões que os perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu quando estavam quase chegando, Aravis ferida... Contou, por fim, que estava com fome, pois não comia nada havia muito tempo.

- Não acho que seja um desgraçado - disse a grande voz.

- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos leões?

- Só há um leão - respondeu a voz.

- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos dois naquela noite...

- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.

- Como sabe disso?

- Eu sou o leão.

Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:

- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia noite, o acolhesse.

- Então foi você que machucou Aravis?

- Fui eu.

- Mas por quê?!

- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.

- Quem é você?

- Eu mesmo - respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de novo: - Eu mesmo - com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta.

Shasta já não temia que a voz pertencesse a alguma coisa que o devorasse; nem temia que fosse a voz de um fantasma. Uma coisa nova aconteceu, um tremor que lhe deu certa alegria.

A névoa passou do pardo para cinza e do cinza para branco. Devia ter começado pouco antes, enquanto ele estava absorvido conversando com a coisa. A brancura ao redor já começava a fulgir. Já enxergava bastante bem a crina e as orelhas do cavalo. Uma luz dourada surgiu à esquerda, e Shasta pensou que fosse o sol.

Caminhando a seu lado, maior do que o cavalo, estava um leão. O cavalo não parecia ter medo, ou talvez não o visse. Era dele que vinha a luz dourada. Ninguém jamais viu algo tão belo e terrível.

Felizmente o menino vivera toda a sua vida no Sul, e não havia escutado os casos, cochichados em Tashbaan, sobre um tétrico demônio de Nárnia que costumava aparecer na forma de leão. E, naturalmente, também tudo ignorava sobre as verdadeiras histórias de Aslam, o Grande Leão, o filho do Imperador-dos-Mares, o Rei dos Grandes Reis de Nárnia. Mas, depois de espiar mais uma vez o Leão, pulou do cavalo. Não conseguia dizer nada, mas também não queria dizer nada, e sabia que nada precisava dizer.

O Grande Rei encaminhou-se para ele. A juba e um perfume estranho e solene, que nela pairava, cercaram o menino. O Leão tocou a fronte de Shasta com a língua. Os olhos de ambos encontraram-se. Depois, instantaneamente, a brancura da névoa misturou-se com o brilho ardente do Leão, num redemoinho de glória, e os dois sumiram. Shasta se viu só, com o cavalo, na relva de uma colina, sob um céu azul. Todas as aves do mundo cantavam.

As Crônicas de Nárnia, O Cavalo e Seu Menino.